(inspirado numa
história de Marcel Aymé)
Á espreita, na calada da noite, escondida
entre os arbustos próximos a janela, Sabine observava sua família. Estavam
todos sentados em volta da mesa na sala de jantar. Seu marido
ocupava a ponta, e a filha, ao lado esquerdo, conversava com o pai. A cor dos
cabelos de Fernando a surpreenderam. Sabine nunca imaginou que seu esposo em
pouco mais de uma década adquiriria tantos fios grisalhos.
E Bianca, ela era uma mulher adulta
agora. Tinha 18... não...19 anos. Sabine esteve tanto tempo fora que se
confundia. Ela lembrava-se de quando Bianca era criança, e, como ela costumava
sentar-se em seu colo para que, em frente ao espelho localizado acima da
cabeceira, no quarto onde dormia com seu esposo, Sabine escovasse os longos
cabelos castanhos escuros de sua filha, um dos muitos traços o qual
compartilhava com a menina, antes de colocá-la na cama.
Olhar para Bianca era como olhar para
uma foto de si mesma quando jovem, A mente de Sabine não pode deixar de traçar
um paralelo entre esta constatação e o seu primeiro encontro com a senhora
Kosugi.
– Seja bem-vinda, Senhorita Lemos. Por
favor, entre – disse Isadora, uma jovem asiática de cabelos lisos que iam até a
cintura, ao abrir a porta.
Sabine adentrou o hall de entrada. Um longo corredor, cujas paredes expunham belos
quadros, a levaram a presença da senhora Kosugi.
O bom gosto e o luxo predominavam na
sala. O lugar era tão rico em detalhes decorativos, que iam desde os cristais
nos lustres aos pequenos enfeites espalhados em mesas e estantes, passando pelo
estofado vermelho rubro das poltronas.
No centro, sentada em uma poltrona, e
com os pés esticados num banquinho, uma senhora idosa encontrava-se reclinada
saboreando um drinque.
– Por favor, minha querida. Sente-se –
pediu a amável senhora. – Isadora, sirva um drinque a nossa estimada advogada.
– Não, obrigado. Não precisa – respondeu
Sabine, desajeitada, pois não intencionava fazer desfeita a sua anfitriã.
Miranda Kosugi era uma cliente
importante. A firma de advocacia em que Sabine trabalhava cuidou por décadas
dos assuntos jurídicos de seu falecido esposo. A viúva herdara toda a fortuna
que seu companheiro, um proeminente executivo da Corporação Saiteki, conquistara,
e junto com esta, os serviços prestados pelos empregadores de Sabine.
Sabine estava em plena ascensão dentro
da empresa. Ela ganhara casos importantíssimos, e, se continuasse nesse ritmo,
em pouco tempo poderia ser promovida a sócia-júnior, o que implicaria uma
participação nos lucros. Porém, Sabine não se importava com o dinheiro em si,
embora admitisse que esta era uma forma agradável de ser reconhecida. O que ela
realmente amava era advogar. Sabine adorava conhecer a lei a fundo, amava estudá-la
em seus mínimos detalhes e aprender todos os seus mecanismos.
Por reconhecerem o valor de Sabine, os
seus superiores entregaram em suas mãos um de seus mais importantes clientes.
– Então, senhora Kosugi, o que posso
fazer por você? – indagou Sabine, enquanto observava Isadora, admirada da
semelhança entre mãe e filha.
– Diga-me. É possível fazer um
testamento deixando sua herança para uma ginoide?
– Bom, as ginoides não tem direito algum
reconhecido pela lei. São máquinas. Deixar uma herança para uma ginoide seria
como tentar deixar uma torradeira de herdeira – Sabine respondeu curiosa.
A senhora Kosugi se levantou, auxiliada
por Isadora, que a conduziu até uma estante repleta de porta-retratos.
– Veja, este é meu falecido marido – disse,
apontando para um franzino asiático de óculos, que posava ao lado do
endoesqueleto de uma ginoide.
Sabine passou os olhos em volta dos
porta-retratos. E então se deparou com fotos da senhora Kosugi quando jovem. A
semelhança entre ela na juventude e sua filha era impressionante.
– Você não vê nada de incomum nestas
fotos? – inquiriu a senhora, num tom de voz em que claramente visava testar a
perspicácia de sua advogada.
Sabine observou as fotos atentamente. A
vida da senhora Kosugi e seu falecido esposo transcorreram perante seus olhos.
Infância, aniversários, casamentos, viagens. Então Sabine notou o que havia de
errado.
– Isadora, não há fotos de Isadora –
disse, ao perceber que não havia fotos da jovem, nem do nascimento, nem quando
criança ou adolescente. Nenhum aniversário, baile de debutante ou formatura.
Nada. Isadora simplesmente não era um
personagem na história contada por aquelas fotos. A única exceção era sua fase
adulta. Fotos de Isadora, já moça, ao lado de sua mãe em eventos e festas abundavam,
contrastando com o vácuo dos primeiros anos de vida.
Como mãe, Sabine
estranhou essa ausência.
– Muito bom, Sabine. Você é a primeira
pessoa a perceber isso – afirmou a senhora Kosugi. – Isadora, traga o capacete.
Isadora saiu do recinto, voltando em
mãos com um capacete negro. Era um capacete de realidade virtual, semelhante ao
que sua filha Bianca usava quando brincava com jogos no computador.
Isadora parou em frente a Sabine, e sob
o comando da senhora Kosugi, lhe entregou o capacete.
– Vista – pediu educadamente a senhora.
Sabine colocou o dispositivo em sua
cabeça. Escuridão total. Então uma imagem apareceu.
Ela viu a si mesma.
Sabine moveu a cabeça para o lado
direito e viu a senhora Kosugi. Virou a cabeça para frente e novamente viu a si
própria. E ao virar para o lado esquerdo viu um espelho.
Ao invés de ver seu próprio reflexo, ela
viu Isadora.
Sabine removeu o capacete, surpresa, e
antes que pudesse fazer qualquer questionamento, a senhora Kosugi interviu.
– Sim, minha cara. Isadora é uma
ginoide.
A senhora retirou um porta-retratos da
estante. Era uma foto sua quando jovem.
– Meu marido, que Deus o tenha, me amava
muito. E queria fazer por mim algo que nenhum homem jamais fizera por uma
mulher – suspirou a idosa.
– Não estou entendendo... – Sabine não
queria dizer isso, mas a frase escapou.
– Alguns homens ordenam que se construam
palácios para suas amadas, outros contratam os melhores artistas para fazerem
pinturas de suas esposas. Meu marido foi além, ela contratou os melhores
roboticistas da Corporação Saiteki para construírem uma ginoide idêntica a mim.
Este era seu presente. Ele dizia que essa era sua prova de amor a mulher de sua
vida, e que minha beleza estaria para sempre em sua figura – a senhora Kosugi
segurou uma pequena lágrima, que insistia em escorrer de seus olhos. – Eu nunca
imaginava que as pessoas fossem pensar que Isadora era minha filha. Ao ouvirem
falar da presença de uma jovem semelhante a mim em nossa mansão todos os tipos
de boatos começaram. Como nunca senti que devia satisfação a ninguém, deixei o
mundo pensar o que quisesse.
– Qual a função do capacete de RV? –
perguntou Sabine, intrigada.
– Veja bem, minha querida. Sou uma
mulher idosa e solitária. Isadora é o meu contato com o mundo exterior. Usando
o capacete de RV eu enxergo tudo o que ela enxerga, e com este computador – ela
apontou para o aparelho na cômoda – eu controlo todos os seus movimentos.
Sabine entendera o que se passara.
Através da ginoide a senhora Kosugi estava revivendo sua juventude.
–
Quando eu não estou controlando Sabine, ela é uma inteligência artificial
plena, capaz de cuidar de si e de outros – disse a senhora Kosugi, postando-se
ao lado da ginoide. – Isadora é minha única companhia nos anos de velhice,
senhorita Lemos. Ela cuida de mim, conversa comigo, faz a minha comida, controla
meus medicamentos. É por isso que desejo deixar minha fortuna para ela.
– Bom, senhora Kosugi. O seu caso é
complicado. Até hoje ninguém conseguiu o direito de partilhar seus bens com uma
ginoide. Terei que analisar com maior cuidado.
A revelação trouxera a advogada
possibilidades antes impensadas. Ela se sentia sobrecarregada. Sabine amava sua
filha, amava seu marido, amava sua casa e todas as tarefas domésticas que
vinham com esta. Ela queria ser uma boa mãe, queria ser uma boa esposa, queria
se dedicar ao lar, se dedicar aos que amava.
Contudo, ela queria muito ser advogada.
Desejava construir uma carreira digna. Porém, conciliar a vida de mãe e esposa
com a vida de advogada tornava-se cada vez mais difícil. Se ela dedicava-se ao
lar, sentia-se traindo sua carreira. Mas ao se dedicar a carreira, sentia-se
negligenciando aqueles a quem amava.
Sendo assim, Sabine tomou uma decisão.
Ela abandonou seu lar há doze anos. Mudou de cidade. Conseguiu um bom emprego
em outra firma de advocacia. Alterou sua cor de cabelo, cor dos olhos e tudo
mais que estivesse ao seu alcance. Sabine, a mãe de Bianca e esposa de
Fernando, daria lugar a Sabine, a advogada, e desta vez para sempre.
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