quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Sabine




(inspirado numa história de Marcel Aymé)

Á espreita, na calada da noite, escondida entre os arbustos próximos a janela, Sabine observava sua família. Estavam todos sentados em volta da mesa na sala de jantar. Seu marido ocupava a ponta, e a filha, ao lado esquerdo, conversava com o pai. A cor dos cabelos de Fernando a surpreenderam. Sabine nunca imaginou que seu esposo em pouco mais de uma década adquiriria tantos fios grisalhos.
E Bianca, ela era uma mulher adulta agora. Tinha 18... não...19 anos. Sabine esteve tanto tempo fora que se confundia. Ela lembrava-se de quando Bianca era criança, e, como ela costumava sentar-se em seu colo para que, em frente ao espelho localizado acima da cabeceira, no quarto onde dormia com seu esposo, Sabine escovasse os longos cabelos castanhos escuros de sua filha, um dos muitos traços o qual compartilhava com a menina, antes de colocá-la na cama.
Olhar para Bianca era como olhar para uma foto de si mesma quando jovem, A mente de Sabine não pode deixar de traçar um paralelo entre esta constatação e o seu primeiro encontro com a senhora Kosugi.

– Seja bem-vinda, Senhorita Lemos. Por favor, entre – disse Isadora, uma jovem asiática de cabelos lisos que iam até a cintura, ao abrir a porta.
Sabine adentrou o hall de entrada. Um longo corredor, cujas paredes expunham belos quadros, a levaram a presença da senhora Kosugi.
O bom gosto e o luxo predominavam na sala. O lugar era tão rico em detalhes decorativos, que iam desde os cristais nos lustres aos pequenos enfeites espalhados em mesas e estantes, passando pelo estofado vermelho rubro das poltronas.
No centro, sentada em uma poltrona, e com os pés esticados num banquinho, uma senhora idosa encontrava-se reclinada saboreando um drinque.
– Por favor, minha querida. Sente-se – pediu a amável senhora. – Isadora, sirva um drinque a nossa estimada advogada.
– Não, obrigado. Não precisa – respondeu Sabine, desajeitada, pois não intencionava fazer desfeita a sua anfitriã.
Miranda Kosugi era uma cliente importante. A firma de advocacia em que Sabine trabalhava cuidou por décadas dos assuntos jurídicos de seu falecido esposo. A viúva herdara toda a fortuna que seu companheiro, um proeminente executivo da Corporação Saiteki, conquistara, e junto com esta, os serviços prestados pelos empregadores de Sabine.
Sabine estava em plena ascensão dentro da empresa. Ela ganhara casos importantíssimos, e, se continuasse nesse ritmo, em pouco tempo poderia ser promovida a sócia-júnior, o que implicaria uma participação nos lucros. Porém, Sabine não se importava com o dinheiro em si, embora admitisse que esta era uma forma agradável de ser reconhecida. O que ela realmente amava era advogar. Sabine adorava conhecer a lei a fundo, amava estudá-la em seus mínimos detalhes e aprender todos os seus mecanismos.
Por reconhecerem o valor de Sabine, os seus superiores entregaram em suas mãos um de seus mais importantes clientes.
– Então, senhora Kosugi, o que posso fazer por você? – indagou Sabine, enquanto observava Isadora, admirada da semelhança entre mãe e filha.
– Diga-me. É possível fazer um testamento deixando sua herança para uma ginoide?
– Bom, as ginoides não tem direito algum reconhecido pela lei. São máquinas. Deixar uma herança para uma ginoide seria como tentar deixar uma torradeira de herdeira – Sabine respondeu curiosa.
A senhora Kosugi se levantou, auxiliada por Isadora, que a conduziu até uma estante repleta de porta-retratos.
– Veja, este é meu falecido marido – disse, apontando para um franzino asiático de óculos, que posava ao lado do endoesqueleto de uma ginoide.
Sabine passou os olhos em volta dos porta-retratos. E então se deparou com fotos da senhora Kosugi quando jovem. A semelhança entre ela na juventude e sua filha era impressionante.
– Você não vê nada de incomum nestas fotos? – inquiriu a senhora, num tom de voz em que claramente visava testar a perspicácia de sua advogada.
Sabine observou as fotos atentamente. A vida da senhora Kosugi e seu falecido esposo transcorreram perante seus olhos. Infância, aniversários, casamentos, viagens. Então Sabine notou o que havia de errado.
– Isadora, não há fotos de Isadora – disse, ao perceber que não havia fotos da jovem, nem do nascimento, nem quando criança ou adolescente. Nenhum aniversário, baile de debutante ou formatura.
Nada. Isadora simplesmente não era um personagem na história contada por aquelas fotos. A única exceção era sua fase adulta. Fotos de Isadora, já moça, ao lado de sua mãe em eventos e festas abundavam, contrastando com o vácuo dos primeiros anos de vida.
Como mãe, Sabine estranhou essa ausência.                                                          
– Muito bom, Sabine. Você é a primeira pessoa a perceber isso – afirmou a senhora Kosugi. – Isadora, traga o capacete.
Isadora saiu do recinto, voltando em mãos com um capacete negro. Era um capacete de realidade virtual, semelhante ao que sua filha Bianca usava quando brincava com jogos no computador.
Isadora parou em frente a Sabine, e sob o comando da senhora Kosugi, lhe entregou o capacete.
– Vista – pediu educadamente a senhora.
Sabine colocou o dispositivo em sua cabeça. Escuridão total. Então uma imagem apareceu.
Ela viu a si mesma.
Sabine moveu a cabeça para o lado direito e viu a senhora Kosugi. Virou a cabeça para frente e novamente viu a si própria. E ao virar para o lado esquerdo viu um espelho.
Ao invés de ver seu próprio reflexo, ela viu Isadora.
Sabine removeu o capacete, surpresa, e antes que pudesse fazer qualquer questionamento, a senhora Kosugi interviu.
– Sim, minha cara. Isadora é uma ginoide.
A senhora retirou um porta-retratos da estante. Era uma foto sua quando jovem.
– Meu marido, que Deus o tenha, me amava muito. E queria fazer por mim algo que nenhum homem jamais fizera por uma mulher – suspirou a idosa.
– Não estou entendendo... – Sabine não queria dizer isso, mas a frase escapou.
– Alguns homens ordenam que se construam palácios para suas amadas, outros contratam os melhores artistas para fazerem pinturas de suas esposas. Meu marido foi além, ela contratou os melhores roboticistas da Corporação Saiteki para construírem uma ginoide idêntica a mim. Este era seu presente. Ele dizia que essa era sua prova de amor a mulher de sua vida, e que minha beleza estaria para sempre em sua figura – a senhora Kosugi segurou uma pequena lágrima, que insistia em escorrer de seus olhos. – Eu nunca imaginava que as pessoas fossem pensar que Isadora era minha filha. Ao ouvirem falar da presença de uma jovem semelhante a mim em nossa mansão todos os tipos de boatos começaram. Como nunca senti que devia satisfação a ninguém, deixei o mundo pensar o que quisesse.
– Qual a função do capacete de RV? – perguntou Sabine, intrigada.
– Veja bem, minha querida. Sou uma mulher idosa e solitária. Isadora é o meu contato com o mundo exterior. Usando o capacete de RV eu enxergo tudo o que ela enxerga, e com este computador – ela apontou para o aparelho na cômoda – eu controlo todos os seus movimentos.
Sabine entendera o que se passara. Através da ginoide a senhora Kosugi estava revivendo sua juventude.
 – Quando eu não estou controlando Sabine, ela é uma inteligência artificial plena, capaz de cuidar de si e de outros – disse a senhora Kosugi, postando-se ao lado da ginoide. – Isadora é minha única companhia nos anos de velhice, senhorita Lemos. Ela cuida de mim, conversa comigo, faz a minha comida, controla meus medicamentos. É por isso que desejo deixar minha fortuna para ela.
– Bom, senhora Kosugi. O seu caso é complicado. Até hoje ninguém conseguiu o direito de partilhar seus bens com uma ginoide. Terei que analisar com maior cuidado.

A revelação trouxera a advogada possibilidades antes impensadas. Ela se sentia sobrecarregada. Sabine amava sua filha, amava seu marido, amava sua casa e todas as tarefas domésticas que vinham com esta. Ela queria ser uma boa mãe, queria ser uma boa esposa, queria se dedicar ao lar, se dedicar aos que amava.
Contudo, ela queria muito ser advogada. Desejava construir uma carreira digna. Porém, conciliar a vida de mãe e esposa com a vida de advogada tornava-se cada vez mais difícil. Se ela dedicava-se ao lar, sentia-se traindo sua carreira. Mas ao se dedicar a carreira, sentia-se negligenciando aqueles a quem amava.
Sendo assim, Sabine tomou uma decisão. Ela abandonou seu lar há doze anos. Mudou de cidade. Conseguiu um bom emprego em outra firma de advocacia. Alterou sua cor de cabelo, cor dos olhos e tudo mais que estivesse ao seu alcance. Sabine, a mãe de Bianca e esposa de Fernando, daria lugar a Sabine, a advogada, e desta vez para sempre. 

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