sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Ela, a ginoide




1ª Lei da Robótica: um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal.

2ª Lei da Robótica: um robô deve obedecer as ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a Primeira Lei.

                                                                                                                                Isaac Asimov

Suzana ouvia Camila chorando. Podia também ouvir a voz do pai da menina. O homem dizia a Camila para não ter medo. Dizia que ele ficaria muito chateado se sua filha não lhe obedecesse. A mãe de Camila dormia. Suzana, portanto, era a única ciente dos eventos que transcorriam naquela madrugada de quinta-feira.
Suzana bateu à porta do quarto da menina.
– Está tudo bem, Camila? – perguntou.
– Está tudo bem, Suzana. Vá embora! – respondeu uma voz masculina.
Suzana entrou no quarto. O pai de Camila, completamente nu e deitado na cama ao lado da menina, que também estava sem roupas, levantou-se. Enrolado nos lençóis ordenou, num tom de fúria contida, que Suzana se retirasse.
– Senhor, devo pedir que retorne ao seu quarto – disse Suzana, friamente.
– Você não manda em mim! Eu mando em você! Agora volte para a sala e não conte o que viu para ninguém! – respondeu o pai.
– Suzana, não vai embora! – suplicou a criança.
– Calma, minha fofa. Calma, você não quer aborrecer a Suzana. É tarde da noite e ela precisa dormir – disse o pai, sentando-se ao lado de sua filha e a abraçando.
– Suzana não precisa dormir! Ela nunca dorme! – respondeu a menina, tentando se soltar.
Suzana ergueu o pai de Camila da cama. Torceu seu braço e o jogou contra a parede. Imobilizado, o homem gritava para que o libertasse.
– Sinto muito, senhor. Não posso permitir que continue machucando essa criança.
O pai, após tentar em vão se libertar, lembrou que Suzana o superava em força física.
As ginoides MPO - 64 foram construídas para cuidar de crianças, e parte de suas especificações incluía não apenas um endoesqueleto de fibra de carbono movimentado por um sistema hidráulico interno, que dava a Suzana uma força descomunal, como também a ginoide fora programada com sofisticadas técnicas de defesa pessoal e artes marciais, um software opcional, o qual o pai de Camila pagou um extra para garantir maior segurança a sua filha, e que agora se arrependera.
Foi necessário menos de um minuto espremido contra a parede para que o pai de Camila percebesse o quanto era inútil resistir. Ele sabia que a segunda lei da robótica estava a favor da ginoide, que não mais lhe obedecia.
O que aconteceria a seguir? A ginoide o manteria preso contra a parede a noite toda? Ela o mataria? “Não, robôs não podem matar humanos, a primeira lei da robótica não permite”, pensou o homem, tentando manter a calma.

A mãe, sonolenta, e acordada pela comoção, apareceu no quarto. Ao ver seu marido nu contra a parede, junto a Suzana, demorou a entender o que estava acontecendo.
Ela conhecia o homem com quem casara. Sabia que, quando o casal decidiu comprar uma babá artificial para a filha, a insistência de seu marido que a ginoide tivesse a aparência de uma adolescente possuía motivações escusas. “Vai ser melhor para a nossa filha. A ginoide vai ser como uma irmã mais velha”, argumentou. A mãe de Camila acreditou, embora ciente que sempre que houvesse a oportunidade o marido transaria com aquela bela jovem ruiva de seios pequenos com o rosto cheio de sardas.
Todavia, ela escolheu ignorar esses fatos. Ser mãe e mulher de carreira ocupava muito tempo, mais do que dispunha. Por isso a presença de Suzana se fazia necessário. Além disso, ela era apenas uma máquina. A ginoide não oferecia risco. Melhor ter seu marido transando com uma mulher mais jovem mecânica do que com uma de carne e osso.
Quando viu sua filha nua na cama, abraçada a um urso panda de pelúcia e aos prantos, entendeu finalmente que não se tratava de uma pulada de cerca de seu marido, se é que transar com uma ginoide poderia ser considerado traição, conforme havia refletido sobre o tema inúmeras vezes.
Desta vez era algo pior, algo que conhecia tão bem quanto as traições de seu marido. Camila havia contado tudo a sua mãe. Porém, não encontrou em sua progenitora a salvação que esperava, tendo que conviver muitas noites com as moléstias noturnas infligidas pelo seu pai. Ao invés de proteger sua filha, optou por ignorar a realidade cruel de seu lar. Agora, ao presenciar a cena daquela madrugada de quinta-feira, ela entendeu o preço de sua omissão.
– Solta meu marido – gritou a mãe a ginoide, que a ignorou sumariamente.
A mulher tentou tirar as mãos que prendiam seu marido. Agrediu a ginoide, puxou seus cabelos, arranhou seu rosto, mas ela permanecia imóvel. Um rosto sem expressão, segurando o homem contra a parede. A mãe se sentia impotente. Uma raiva tomou conta dela ao perceber que nada podia contra aquela máquina que flagelava seu marido.
Então a mãe viu, na cabeceira ao lado da cama, um abajur á meia-luz. A mulher o ergueu, tirou o chapéu que protegia a lâmpada e a quebrou, golpeando-a contra a parede. Faíscas jorravam da ponta do abajur. A mãe cravou o objeto no olho direito da ginoide, penetrando fundo em sua órbita ocular.
 Uma corrente elétrica percorreu todo o corpo de Suzana. Ela soltou o homem e começou a ter espasmos pelo meio do quarto. A ginoide caminhava para frente e para trás enquanto um forte cheiro de queimado emanava dela e todas as luzes da casa começaram a piscar até que, enfim, a escuridão tomou conta da residência.
Suzana caiu no chão.
O pai apoiou as costas na parede. A mãe pegou o lençol no chão e cobriu seu marido. Da cama a criança observava a cena. A menina sentia-se negligenciada pela mãe, que optou por socorrer o homem que a machucara. Naquele momento Camila sentiu que a única pessoa que se importava com ela era Suzana, e correu em direção a ginoide.
– Filha, se afasta dela – gritou a mãe.
A cavidade negra e chamuscada que antes fora o olho direito, e que encontrava-se perfurada pelo abajur, exalava um cheiro de queimado que ardia nas narinas da menina, mas ela lutava contra o mal-estar e sacudia o corpo inerte de Suzana.
– Acorda, por favor – implorou Camila, ajoelhada.
As lágrimas da menina banhavam o rosto da ginoide. Então, como se as lágrimas a tivessem despertado, ela se levantou. A única luz no quarto vinha dos postes na rua, que, junto ao brilho natural do luar, formavam uma combinação de tons de amarelo e prata. Na escuridão a sombra da ginoide, projetada na parede, adquiriu contornos fantasmagóricos. Ela caminhou em silêncio em direção ao casal, que se encontrava sentado no chão, entre a cabeceira e a porta que dava para o corredor.
Toda a vizinhança acordou com os gritos de socorro dos pais de Camila.

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