quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

A Eva Mecânica (trecho)


A Eva Mecânica

A paixão começa doce, e termina amarga.

                             Ditado popular

Quando um homem está apaixonado a única realidade que existe é aquela que ele cria em sua mente. Tornamo-nos escravos de nossos sentimentos, e não mais somos capazes de pensar claramente. A paixão entorpece, e no final arruína a vida de sua vítima. Crimes passionais, suicídios, depressão, a paixão gera tragédias que poderiam ser evitadas, caso o ser humano se esforçasse em ser um pouco mais racional. Portanto, não tentarei, neste breve relato que escrevo em minha cela, apontar culpados, pois reconheço que sou o único responsável pela minha sina. Meu intuito é apenas expor ao leitor as circunstâncias que levaram ao meu encarceramento. Que este documento sirva de alerta a todos os homens que sofrem com o feitiço da paixão.
Lembro-me da primeira vez que soube das ginoides. Lera numa revista do meu avô, datada do início do século 21, acerca dos primeiros modelos. Naquela época elas ainda não eram chamadas de ginoides, mas simplesmente de robôs. Aliás, nem dava para comparar as ginoides daquela época com os modelos de hoje. É o mesmo que querer comparar velhos televisores LCD com os atuais aparelhos holográficos. Olhando para as fotos entendi porque as primeiras ginoides eram apenas uma curiosidade de feiras científicas. Robôs com formas femininas, que imitavam uma mulher, e cobertos com silicone, que emulava a pele humana. Percebia-se claramente que aquilo não era uma mulher. Isso explica porque as primeiras tentativas de comercialização das ginoides resultaram em um fracasso retumbante.
Mas com o passar das décadas, a tecnologia evoluiu e as gerações seguintes de ginoides foram ficando cada vez mais sofisticadas. A grande virada aconteceu com a invenção da carne sintética, inicialmente desenvolvida para tratar de vítimas de queimaduras, e que logo passou a ser utilizada também na fabricação de ginoides. O resultado foi que se tornou impossível diferenciar uma ginoide de uma mulher de carne e osso. E não era só a aparência, ao tocá-las, sentia-se também a textura da pele humana, incluindo o calor do corpo. Embora esse novo modelo fosse num primeiro momento vendido a um valor altíssimo, que poucos homens podiam pagar, não tardou para que o preço baixasse, e, em pouco tempo, as ginoides tornaram-se acessíveis ao homem comum.
Feministas celebraram e prostitutas reclamaram. As primeiras, alegando que as ginoides haviam libertado as mulheres de uma das mais antigas formas de opressão masculina. As segundas, porque as ginoides simplesmente arruinaram o ramo da prostituição. Donos de prostíbulos começaram a dispensar suas “funcionárias” e substituí-las por ginoides. As razões são óbvias, ginoides não dormem, não precisam comer, estão dispostas a fazer sexo 24 horas por dia e realizar qualquer fantasia sexual do cliente, por mais bizarra que fosse, sem se sentir constrangida ou humilhada, e ainda por cima estão sempre belas, não envelhecem, não menstruam e não correm o risco de engravidar. Fora que ginoides não exigem pagamento do cliente e o prostíbulo pode ficar com todo o lucro para si. 
Embora prostitutas tenham se organizado e feito protestos contra as ginoides, isso surtiu nenhum efeito. Frequentadores de prostíbulos não queriam saber mais de prostitutas comuns, queriam as ginoides, porque, além de serem mais belas que as mulheres de carne e osso, estavam sempre prontas para realizar qualquer desejo sexual do cliente. Era o fim da profissão prostituição, pelo menos para as mulheres humanas.
Mas houve uma reviravolta quando a Corporação Saiteki desenvolveu um software que passou no teste de Turing1, e criou a primeira inteligência artificial do planeta. Isso resolveu o último grande defeito: a falta de personalidade. Agora ginoides não apenas eram mulheres belíssimas e excelentes amantes na cama, como também se tornaram versadas em diversos assuntos, sendo capazes de conversar com o usuário sobre qualquer tema de seu interesse, de futebol a política. As ginoides, sempre carinhosas, sempre belas, sempre boas donas de casa e sempre dispostas a sexo, tornaram-se a mulher dos sonhos de todos os homens.
Em pouco tempo, homens começaram a perder o interesse pelas mulheres de carne e osso e filas formaram-se em frente às lojas revendedoras de ginoides. Dessa vez foi a vez das mulheres comuns, indignadas ao verem homens as preterindo por ginoides, protestarem, e dessa vez o protesto surtiu efeito. O uso das ginoides passou a ser regulamentado. Homens foram proibidos de se casar ou manter qualquer vínculo afetivo com ginoides, sob pena de prisão, e o uso delas ficou restrito apenas para fins de exploração sexual, ou seja, prostituição.
Isso foi um desastre para os milhares de homens comuns que não tinham sorte no amor e estavam solitários. Sou um deles, e foi para homens como eu que surgiu um mercado negro de ginoides. O esquema funciona da seguinte forma: para o homem que paga a quantia certa de dinheiro, o contrabandista consegue um bom modelo sem número de série. E o melhor de tudo, providencia também certidão de nascimento e carteira de identidade falsa, de modo que ela pode passar por esposa ou namorada, sem que ninguém perceba, visto que é impossível diferenciar uma ginoide de uma mulher de carne e osso apenas conversando ou olhando para ela.
Consegui o número de um contrabandista por meio de um amigo. Era tarde da noite, bati na porta e um homem a abriu. Era o meliante, havíamos nos encontrado dias atrás em um barzinho, para discutir preço e especificações do modelo. Ele me disse para entrar, estávamos num antigo armazém, caminhamos por um corredor pouco iluminado, descemos uma escada e entramos em um porão. Lá estava a ginoide. Cabelos escuros e lisos, pele clara, seios grandes, olhos castanhos, corpo atlético, tudo conforme havia pedido. Ela era simplesmente perfeita, não sabia nem o que dizer.
O contrabandista me disse para escolher um nome. Escolhi Eva, era mais do que apropriado.


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