quinta-feira, 22 de novembro de 2012

A substituta (trecho)


A substituta 

Toda mulher sábia edifica a sua casa; 
mas a tola a derruba com as próprias mãos.

Provérbios 14:1

Todas as vezes que saía da firma de contabilidade parava em frente à vitrine das lojas para admirar as ginoides. Ao vivo eram mais belas do que nas propagandas de TV. “Ginoides: mais do que uma mulher, tudo o que você sempre sonhou”, era o slogan da Corporação Saiteki. Havia ginoides para todo tipo de função imaginável: empregadas domésticas, babás, garçonetes, enfermeiras, secretárias, todas devidamente trajadas de acordo com suas respectivas funções, e colocadas lado a lado em plataformas de uns cinco centímetros de altura. Pela vitrine podia ver um casal, a mulher grávida de uns seis ou sete meses, escolhendo uma futura babá para seu filho. A ginoide que o casal examinava era um modelo que imitava uma adolescente ruiva de uns dezesseis anos.

No fundo havia uma peça separada do resto da loja por uma cortina preta. Em cima da porta de acesso, um letreiro com os dizeres “PROIBIDA A ENTRADA DE MENORES DE DEZOITO ANOS.” Naquela seção o consumidor encontrava ginoides vestidas com sensuais lingeries, cinta-liga, roupas de couro sadomasoquistas, ou mesmo completamente nuas. Havia um pouco de tudo para todos os gostos. Até algum tempo atrás eu entrava naquela seção e, junto com outros homens, silenciosamente realizava o ritual de contemplar aquelas belezas robóticas e deixar minha imaginação se esbaldar em imagens pornográficas. De vez em quando acontecia dos homens que circulavam por aquela isolada parte da loja iniciarem uma conversa casual.

 “Muito gostosa essa loira”, disse certa vez um homem ao meu lado, que admirava a mesma ginoide que eu. Era de comentários casuais como esse que nasciam breves diálogos que me permitiram aprender muito sobre os frequentadores daquela área.

Para minha surpresa, descobri que não era o único homem casado que cobiçava secretamente uma ginoide. No entanto, eu possuir uma aliança no dedo tornava complicado adquirir aquele produto, relegando-a a uma mera fantasia de um homem frustrado com o casamento. Por essa razão deixei de frequentar o local há tempos e agora me contentava em apenas olhar as ginoides expostas na vitrine. Não fazia sentido me torturar desejando algo que nunca poderia ter. 

Minha esposa, Letícia, havia mudado bastante desde que nos casamos. Eram muitas as pequenas coisas que ela fazia para me irritar no nosso dia a dia. Letícia provocava discussões pelos motivos mais banais, saía e não dava satisfações para onde ia, depreciava-me na frente dos outros, gastava todo o nosso dinheiro com inutilidades, rejeitava-me quando a procurava para sexo. Não raro, essas pequenas incomodações resultavam em brigas monumentais. Para minha esposa, eu era culpado tanto pelo que fazia quanto pelo que não fazia, e a punição dela variava entre a frieza e provocações gratuitas. A língua ferina de Letícia era sua arma mais letal, uma arma que me feria como uma navalha, deixando feridas que nunca cicatrizavam. 
Meu vizinho, Renato, que morava no apartamento ao lado, me aconselhou o divórcio. No entanto eu não queria, pois tinha esperança que fosse apenas uma fase ruim do casamento. 

“Sabe qual é o seu problema?”, costumava dizer o meu amigo. “Você se esforça demais para ser um bom marido. Quanto mais você tenta agradá-la mais Letícia te vê como um sujeito fraco, carente e sem atitude. Nós, maridos, tentamos fazer tudo da forma mais correta possível, e somos desprezados. Tentamos ser o que as mulheres queriam que fôssemos. Tornamo-nos confiáveis, maduros, domesticados. E então o que acontece? Elas ficam entediadas, é isso o que acontece!”.

Renato me contou que fora casado antes e que Letícia lembrava muito sua ex-esposa em tudo que ela tinha de pior. E tendo sua experiência como base, afirmava categoricamente que era ingenuidade minha crer que era apenas uma fase ruim do casamento. Mas não adiantava, mesmo se eu quisesse me divorciar iria perder grande parte do meu patrimônio por causa do acordo pré-nupcial. Se me divorciasse perderia Letícia e não teria dinheiro para adquirir a minha tão sonhada ginoide.

Renato era um homem que eu invejava. Sua esposa atual, Joana, tinha cinquenta e quatro anos, mas aparentava ter uns quinze anos a menos. Além de ser uma mulher de beleza invejável para sua idade, também era a mulher mais dedicada e carinhosa que já havia conhecido. Joana era muito agradável de se conversar. Inteligente, divertida e perspicaz, ela entretinha-me particularmente quando contava as anedotas do seu casamento.

Por outro lado, meu inferno pessoal com Letícia piorou. De uns tempos para cá ela começou a ficar mais distante que o normal. Não raro, ligava avisando que ia chegar mais tarde, porque tinha um serviço importante para terminar no trabalho ou dava outra desculpa parecida. Apesar de todos os problemas, ainda a amava e estava disposto a salvar o nosso casamento. Por essa razão decidi que teríamos uma conversa séria.

 Ouvi a porta se abrir, era tarde da noite, e da minha poltrona na sala vi Letícia entrar e se dirigir ao quarto. Ao contrário do que fiz em outras ocasiões, desta vez não a ignorei. Interceptei-a no corredor entre a sala e o quarto. Ela não queria conversar, disse que estava cansada. Segurei-a pelos braços e disse que não aguentava mais, que tínhamos que resolver nossa situação agora. Letícia empurrou-me e foi para o quarto. Sentada na cama, com as mãos no rosto, chorava, e então Letícia ergueu o rosto e começou a falar. 
Ela me confessou que estava tendo um caso com Felipe, uma antiga paixão dos tempos de faculdade. Tentei primeiro compreender, disse que não entendia o que tinha feito para merecer isso. Sempre fui fiel, carinhoso, respeitador e sempre fazia todas as vontades dela. Esforcei-me ao máximo para ser tudo aquilo que uma esposa espera de um marido.

 – Não sei explicar – disse Letícia com um olhar triste. – Eu sei que você sempre foi bom para mim. Eu apenas não te amo mais.  
Após alguns momentos de silêncio, retomou a palavra.
– Eu quero o divórcio, estou apaixonada por Felipe e temos planos de ficar juntos.

Uma discussão teve início. Berros, gritos, acusações mútuas, pequenos empurrões. Antigos ressentimentos foram trazidos à tona. A sua língua ferina, sempre afiada e pronta para derrubar meu espírito com palavras cruéis, entrou em ação. Perdi o controle. Letícia tentou se defender, mas eu a derrubei e me coloquei por cima dela. Tapei sua boca com a mão esquerda e com a direita segurei-a pelos cabelos. Comecei a golpear sua cabeça contra o chão repetidas vezes. Ela desmaiou. Letícia estava deitada ao lado do abajur quebrado e do bidê caído. Sangue escorria pela parte de trás de sua cabeça. Eu estava fora de meu juízo normal. O ódio havia sobrepujado minha racionalidade.

 Fui ao banheiro lavar o rosto. Ao olhar para o espelho vi em meu rosto resquícios dos impulsos destrutivos que haviam tomado conta de mim por um breve momento. Fiquei sentado na privada, encarando os azulejos brancos do banheiro, às vezes, pensando no que tinha feito, e momentos depois me perdendo em um vazio de pensamentos, como uma televisão fora do ar. Devo ter ficado horas naquela posição, e teria ficado nesse estado por mais tempo se a campainha não tivesse tocado.

Saí do meu transe. Entrei em pânico. Fingi que não havia ninguém em casa. Então, ouvi uma voz do outro lado da porta. Era Renato, chamando meu nome. Aliviado, abri a porta e o convidei para entrar. Eu sempre o vi como uma figura paterna, e talvez por essa razão tenha aberto a porta e contado o que aconteceu na esperança de que pudesse me ajudar, tal qual um pai a um filho, quando este está encrencado. Ia ligar para a polícia quando Renato mandou eu me afastar do videofone e disse para me sentar.

– Lembra que você sempre quis ter uma ginoide? – perguntou Renato. – Pois bem, meu jovem amigo, você já ouviu falar de substituição?
Quando ele falou a palavra substituição eu não sabia o que pensar. Substituição era uma espécie de lenda urbana. Havia rumores de laboratórios clandestinos no porão de casas antigas, fábricas abandonadas ou qualquer outro lugar afastado e escondido, onde supostamente fabricava-se ginoides que eram réplicas perfeitas de esposas assassinadas. Era o crime perfeito. Mas por ser o crime perfeito, ninguém acreditava que fosse verdade, pois nunca um caso fora descoberto. 
– Eu conheço algumas pessoas que podem fazer isso. Podem fazer o corpo de Letícia desaparecer, de forma que nunca seja encontrado, e substituí-la por uma ginoide – afirmou Renato. 
A proposta era a minha salvação, porém duvidava que fosse verdade.
– Você gosta da minha esposa Joana, não? – perguntou-me com um tom de voz um tanto sacana. – Não fique envergonhado. Acha que não percebi o jeito que você olha e conversa com ela? Joana é a esposa perfeita, não? Pena que ela nem sempre foi assim. Há muito tempo atrás Joana era uma megera como Letícia. Até que um dia eu cansei e contratei umas pessoas para matá-la. Mas essas pessoas não se limitaram a isso. Eles a mataram e a substituíram por uma ginoide.

Fiquei perplexo. Joana era uma ginoide? Mas ela era tão....humana.

Leia o resto em "A Eva mecânica e outras histórias de ginoides", a ser lançado em breve.

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