sábado, 29 de dezembro de 2012

Veronica Lake Fake

Trecho do conto Veronica Lake Fake, do livro "A Eva Mecânica e outras Histórias de Ginoides".


Veronica Lake Fake

Quem faria uma lei para os amantes?
O amor é em si mesmo uma lei maior.

Boécio

Quando vi Veronica Lake pela primeira vez me encantei com sua beleza. Ela sem dúvida foi uma das mais belas mulheres da era de ouro de Hollywood. Mas somente agora, olhando para minha musa sentada no banco do passageiro, percebi que boa parte de sua beleza se devia as roupas e penteados dos anos 40. Aquela época possuía um certo charme peculiar.
Ela usava uma blusa branca e calças jeans. Seu cabelo era liso, sem aquele penteado ondulado dos filmes antigos, e o rosto estava sem maquiagem. Não havia na minha Veronica Lake fake aquele glamour de estrela de cinema. No entanto, mesmo vestida como uma mulher comum, a beleza de Veronica se destacava.
Fazia dez horas que havíamos deixado Porto Alegre. Estávamos indo rumo a Argentina. Dentro de duas horas chegaríamos ao nosso destino. Coloquei o carro no piloto automático, recostei o banco para trás e liguei o televisor.
– Boa noite a todos. Eu sou Ângelo Braga e este é o programa Roda Aberta. O tema do programa de hoje é “Ginoides: legalizar ou não?”. Para discutirmos esse assunto teremos dois convidados. Do meu lado esquerdo temos Andrea Steinem. Psicóloga e presidente do grupo Mulheres pela Humanidade no Brasil. Ao lado direito está Luciano Marduini. Advogado e líder do movimento Amor Cibernético. No centro da mesa temos o professor André Martins. Conceituado roboticista. Trabalhou com a Corporação Saiteki na fabricação das primeiras ginoides em nosso país. Ele é autor do livro Sexualidade na Era das Máquinas: o Impacto das Ginoides na Contemporaneidade. Começo com uma pergunta para Andrea Steinem. Andrea, porque a Mulheres pela Humanidade se opõe as ginoides?
– Boa noite, Ângelo. Bom, para começar, gostaria de deixar bem claro que ginoides são máquinas. Elas se parecem com mulheres, falam como mulheres, mas não se enganem, não são mulheres. Não há diferença nenhuma entre uma ginoide e uma geladeira, que isso fique bem claro. Portanto, não há razão para sentirmos alguma pena ou empatia por elas. Bom, porque a Mulheres pela Humanidade se opõe as ginoides? Porque ginoides são uma grande afronta a dignidade feminina! Não bastava mulheres serem objetificadas em comerciais de cerveja, revistas de moda e filmes pornográficos. As mulheres estão sendo transformadas em objetos sexuais para a satisfação masculina....
– Desculpe interromper, mas não são as mulheres humanas quem foram objetificadas. A senhora falou agora há pouco que ginoides são máquinas.
– Err...sim, eu falei isso. Mas por favor, entenda, as ginoides foram um grande retrocesso na luta pela igualdade entre os gêneros. Durante séculos mulheres foram tratadas como propriedade masculina e quando, finalmente, essa mentalidade foi superada, as ginoides apareceram. Permitir a comercialização de ginoides nada mais é do que legitimar a ideia de que a mulher deve ser uma escrava sexual do homem. Por que homens compram ginoides? Para fazer sexo com elas....
–  Desculpe, mas o senhor Marduini está pedindo a palavra.
– Boa noite, Ângelo. Boa noite a todos que estão nos assistindo. O que a senhora Andrea acabou de falar é uma mentira. Se homens querem ginoides apenas como escravas sexuais, então por que lutam para que a união civil entre um homem e uma ginoide seja legalmente reconhecida? A verdade é que muitos homens se apaixonam por ginoides e as enxergam como suas companheiras. Queremos nos casar com nossas ginoides, apresentá-las como nossas esposas sem sermos vítimas de preconceito. Queremos deixar nossos bens de herança para elas. Parte da luta do movimento Amor Cibernético, além de tornar a comercialização de ginoides legal novamente, é conquistar o direito de adotar uma criança. Todo o ser humano deve ter o direito de constituir família, independentemente de sua orientação sexual. O movimento Amor Cibernético luta pelo direito de toda pessoa de ser livre para amar o indivíduo que ele quiser, não importa se esse indivíduo é um ser humano ou uma máquina.
– Ora, Luciano, você sabe que isso é uma indecência! Uma afronta a Humanidade! Agora uma máquina é melhor que uma mulher de verdade? Como você pode defender uma coisa dessas? Imagine uma criança adotada por um casal ciberssexual. Que tipo de criação terá uma criança num ambiente desses? Temos que valorizar a família tradicional.
– Melhor que a de muitos casais humanos, senhora Steinem. Nos países onde a adoção de crianças por casais ciberssexuais é legalizada, pesquisas mostram que ginoides cuidam de crianças melhor que humanas. E também que crianças educadas por ginoides têm desempenho escolar melhor que as educadas por mulheres humanas. As razões são óbvias. Ginoides, como você mesmo disse, são máquinas, e por isso nunca estão cansadas demais para cuidar da criança, dar atenção a ela ou ajudá-la com o dever de casa. Em suma, a ginoide é uma mãe perfeita em tempo integral. Sabe, Andrea, é curioso logo você falar em valorização da família tradicional. Quando as ginoides apareceram no mercado, séculos atrás, as feministas da época as viram como uma grande conquista para as mulheres. O argumento feminista era que graças as ginoides as mulheres humanas finalmente estariam livres do papel social milenar de mães e esposas imposto pela sociedade.
O surgimento da ciberssexualidade como uma nova orientação sexual foi um choque para a moral humana. Por mais que a humanidade modificasse seus conjuntos de valores e aceitasse as mais diferentes preferências sexuais como uma opção sexual tão válida como outra qualquer, não fazendo um julgamento de valor entre uma e outra, a ideia de humanos se relacionarem com máquinas era algo que até mesmo a mente mais liberal tinha dificuldades de aceitar como normal. O amor entre homens e máquinas era um fenômeno sem precedentes na história da humanidade, e o ser humano, quando se vê perante aquilo que é diferente e a qual não compreende, ergue as muralhas do preconceito e da intolerância.
Embora houvesse mulheres ciberssexuais, a maioria era indiscutivelmente do sexo masculino. A explicação para essa discrepância estava na própria gênese da ciberssexualidade. Quando a Corporação Saiteki lançou as ginoides no mercado, há mais de dois séculos, seus executivos acreditavam ter lançado um produto revolucionário na indústria do erotismo. Revolucionário, mas ainda assim, apenas um produto que não tinha pretensões maiores, exceto aumentar os lucros da empresa. Ninguém poderia prever que o que inicialmente fora concebido apenas como uma máquina direcionada a satisfação da libido masculina, iria ter consequências tão inesperadas e causar uma transformação na sexualidade humana.
A Corporação Saiteki, numa estratégia para aumentar ainda mais os seus já elevados lucros com as ginoides, começou a negociar acordos de uso de imagem com celebridades. A primeira a fechar contrato foi a Top Model escocesa Alicia Hadaly – eleita a mais bela mulher do mundo consecutivas vezes, por diversas publicações. Nele havia uma cláusula que inclua uma parcela do lucro das vendas e como resultado, pela primeira vez na história, uma mulher superou homens nas listas de maiores fortunas do mundo.
Outras beldades famosas seguiram os passos de Alicia Hadaly e uma onda de ginoides fakes teve início no mundo inteiro. Graças as fakes qualquer homem comum podia ter as mulheres mais desejáveis do planeta em sua casa. Você não precisava ser bonito, rico ou famoso. Bastava ir à qualquer loja e escolher a fake de sua atriz ou modelo favorita.
Eu nunca havia me interessado por ginoides até o dia em que minha vida desmoronou. Descobri que sofria de uma cardiopatia congênita grave e teria que passar por uma arriscada cirurgia. Podia não sobreviver a operação. Como se não bastasse, alguns meses antes, havia também perdido meu emprego. Mas o fundo do poço foi quando minha noiva Denise me abandonou. Ela dizia que minha situação era complicada demais e rompeu o noivado. “Não posso te ver desse jeito”, ela disse. Eu podia lidar com qualquer dificuldade, desde que estivesse ao meu lado, mas ela não estava mais. Minha vida tinha acabado.
Durante o tempo em que fiquei internado no hospital passei madrugadas inteiras assistindo televisão. Pulava de canal em canal numa tentativa de anestesiar meu sofrimento amoroso com o brilho hipnótico do aparelho. Foi quando descobri uma emissora que passava filmes de Veronica Lake às madrugadas. O primeiro que assisti foi I Married a Witch.
Fantasiar com Veronica Lake era a forma que havia encontrado de esquecer minha ex-noiva. Na minha imaginação eu tinha uma Veronica Lake em preto e branco em meus braços e nela encontrava todo o conforto e ternura que me faltava naquele momento difícil de minha vida. Veronica Lake era minha namorada imaginária. Minha paixão platônica. 

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