Trecho do conto Veronica Lake Fake, do livro "A Eva Mecânica e outras Histórias de Ginoides".
Veronica Lake Fake
Quem faria uma lei para os
amantes?
O amor é em si mesmo uma lei
maior.
Boécio
Quando vi
Veronica Lake pela primeira vez me encantei com sua beleza. Ela sem dúvida foi
uma das mais belas mulheres da era de ouro de Hollywood. Mas somente agora,
olhando para minha musa sentada no banco do passageiro, percebi que boa parte
de sua beleza se devia as roupas e penteados dos anos 40. Aquela época possuía
um certo charme peculiar.
Ela usava
uma blusa branca e calças jeans. Seu cabelo era liso, sem aquele penteado
ondulado dos filmes antigos, e o rosto estava sem maquiagem. Não havia na minha
Veronica Lake fake aquele glamour de estrela de cinema. No
entanto, mesmo vestida como uma mulher comum, a beleza de Veronica se
destacava.
Fazia dez
horas que havíamos deixado Porto Alegre. Estávamos indo rumo a Argentina.
Dentro de duas horas chegaríamos ao nosso destino. Coloquei o carro no piloto
automático, recostei o banco para trás e liguei o televisor.
– Boa noite
a todos. Eu sou Ângelo Braga e este é o programa Roda Aberta. O tema do
programa de hoje é “Ginoides: legalizar ou não?”. Para discutirmos esse assunto
teremos dois convidados. Do meu lado esquerdo temos Andrea Steinem. Psicóloga e
presidente do grupo Mulheres pela Humanidade no Brasil. Ao lado direito está
Luciano Marduini. Advogado e líder do movimento Amor Cibernético. No centro da
mesa temos o professor André Martins. Conceituado roboticista. Trabalhou com a Corporação
Saiteki na fabricação das primeiras ginoides em nosso país. Ele é autor do
livro Sexualidade na Era das Máquinas: o Impacto das Ginoides na Contemporaneidade.
Começo com uma pergunta para Andrea Steinem. Andrea, porque a Mulheres pela
Humanidade se opõe as ginoides?
– Boa
noite, Ângelo. Bom, para começar, gostaria de deixar bem claro que ginoides são
máquinas. Elas se parecem com mulheres, falam como mulheres, mas não se
enganem, não são mulheres. Não há diferença nenhuma entre uma ginoide e uma
geladeira, que isso fique bem claro. Portanto, não há razão para sentirmos
alguma pena ou empatia por elas. Bom, porque a Mulheres pela Humanidade se opõe
as ginoides? Porque ginoides são uma grande afronta a dignidade feminina! Não
bastava mulheres serem objetificadas em comerciais de cerveja, revistas de moda
e filmes pornográficos. As mulheres estão sendo transformadas em objetos
sexuais para a satisfação masculina....
– Desculpe
interromper, mas não são as mulheres humanas quem foram objetificadas. A
senhora falou agora há pouco que ginoides são máquinas.
– Err...sim,
eu falei isso. Mas por favor, entenda, as ginoides foram um grande retrocesso
na luta pela igualdade entre os gêneros. Durante séculos mulheres foram
tratadas como propriedade masculina e quando, finalmente, essa mentalidade foi
superada, as ginoides apareceram. Permitir a comercialização de ginoides nada
mais é do que legitimar a ideia de que a mulher deve ser uma escrava sexual do
homem. Por que homens compram ginoides? Para fazer sexo com elas....
– Desculpe, mas o senhor Marduini está pedindo
a palavra.
– Boa
noite, Ângelo. Boa noite a todos que estão nos assistindo. O que a senhora
Andrea acabou de falar é uma mentira. Se homens querem ginoides apenas como
escravas sexuais, então por que lutam para que a união civil entre um homem e
uma ginoide seja legalmente reconhecida? A verdade é que muitos homens se
apaixonam por ginoides e as enxergam como suas companheiras. Queremos nos casar
com nossas ginoides, apresentá-las como nossas esposas sem sermos vítimas de
preconceito. Queremos deixar nossos bens de herança para elas. Parte da luta do
movimento Amor Cibernético, além de tornar a comercialização de ginoides legal
novamente, é conquistar o direito de adotar uma criança. Todo o ser humano deve
ter o direito de constituir família, independentemente de sua orientação
sexual. O movimento Amor Cibernético luta pelo direito de toda pessoa de ser
livre para amar o indivíduo que ele quiser, não importa se esse indivíduo é um
ser humano ou uma máquina.
– Ora,
Luciano, você sabe que isso é uma indecência! Uma afronta a Humanidade! Agora
uma máquina é melhor que uma mulher de verdade? Como você pode defender uma
coisa dessas? Imagine uma criança adotada por um casal ciberssexual. Que tipo
de criação terá uma criança num ambiente desses? Temos que valorizar a família
tradicional.
– Melhor
que a de muitos casais humanos, senhora Steinem. Nos países onde a adoção de
crianças por casais ciberssexuais é legalizada, pesquisas mostram que ginoides
cuidam de crianças melhor que humanas. E também que crianças educadas por
ginoides têm desempenho escolar melhor que as educadas por mulheres humanas. As
razões são óbvias. Ginoides, como você mesmo disse, são máquinas, e por isso
nunca estão cansadas demais para cuidar da criança, dar atenção a ela ou ajudá-la
com o dever de casa. Em suma, a ginoide é uma mãe perfeita em tempo integral.
Sabe, Andrea, é curioso logo você falar em valorização da família tradicional.
Quando as ginoides apareceram no mercado, séculos atrás, as feministas da época
as viram como uma grande conquista para as mulheres. O argumento feminista era
que graças as ginoides as mulheres humanas finalmente estariam livres do papel
social milenar de mães e esposas imposto pela sociedade.
O
surgimento da ciberssexualidade como uma nova orientação sexual foi um choque
para a moral humana. Por mais que a humanidade modificasse seus conjuntos de
valores e aceitasse as mais diferentes preferências sexuais como uma opção
sexual tão válida como outra qualquer, não fazendo um julgamento de valor entre
uma e outra, a ideia de humanos se relacionarem com máquinas era algo que até
mesmo a mente mais liberal tinha dificuldades de aceitar como normal. O amor
entre homens e máquinas era um fenômeno sem precedentes na história da
humanidade, e o ser humano, quando se vê perante aquilo que é diferente e a
qual não compreende, ergue as muralhas do preconceito e da intolerância.
Embora
houvesse mulheres ciberssexuais, a maioria era indiscutivelmente do sexo
masculino. A explicação para essa discrepância estava na própria gênese da
ciberssexualidade. Quando a Corporação Saiteki lançou as ginoides no mercado,
há mais de dois séculos, seus executivos acreditavam ter lançado um produto
revolucionário na indústria do erotismo. Revolucionário, mas ainda assim, apenas
um produto que não tinha pretensões maiores, exceto aumentar os lucros da
empresa. Ninguém poderia prever que o que inicialmente fora concebido apenas
como uma máquina direcionada a satisfação da libido masculina, iria ter
consequências tão inesperadas e causar uma transformação na sexualidade humana.
A Corporação
Saiteki, numa estratégia para aumentar ainda mais os seus já elevados lucros
com as ginoides, começou a negociar acordos de uso de imagem com celebridades.
A primeira a fechar contrato foi a Top Model escocesa Alicia Hadaly – eleita a mais bela mulher do
mundo consecutivas vezes, por diversas publicações. Nele havia uma cláusula que
inclua uma parcela do lucro das vendas e como resultado, pela primeira vez na
história, uma mulher superou homens nas listas de maiores fortunas do mundo.
Outras
beldades famosas seguiram os passos de Alicia
Hadaly e uma onda de ginoides fakes
teve início no mundo inteiro. Graças as fakes
qualquer homem comum podia ter as mulheres mais desejáveis do planeta em sua
casa. Você não precisava ser bonito, rico ou famoso. Bastava ir à qualquer loja
e escolher a fake de sua atriz ou
modelo favorita.
Eu nunca
havia me interessado por ginoides até o dia em que minha vida desmoronou.
Descobri que sofria de uma cardiopatia congênita grave e teria que passar por
uma arriscada cirurgia. Podia não sobreviver a operação. Como se não bastasse,
alguns meses antes, havia também perdido meu emprego. Mas o fundo do poço foi
quando minha noiva Denise me abandonou. Ela dizia que minha situação era
complicada demais e rompeu o noivado. “Não posso te ver desse jeito”, ela
disse. Eu podia lidar com qualquer dificuldade, desde que estivesse ao meu
lado, mas ela não estava mais. Minha vida tinha acabado.
Durante o tempo
em que fiquei internado no hospital passei madrugadas inteiras assistindo
televisão. Pulava de canal em canal numa tentativa de anestesiar meu sofrimento
amoroso com o brilho hipnótico do aparelho. Foi quando descobri uma emissora
que passava filmes de Veronica Lake às madrugadas. O primeiro que assisti foi I
Married a Witch.
Fantasiar com Veronica Lake era a forma que havia
encontrado de esquecer minha ex-noiva. Na minha imaginação eu tinha uma
Veronica Lake em preto e branco em meus braços e nela encontrava todo o
conforto e ternura que me faltava naquele momento difícil de minha vida.
Veronica Lake era minha namorada imaginária. Minha paixão platônica.
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