domingo, 6 de janeiro de 2013

A Última Mulher da Terra




Se não fosse pelas mulheres o homem ainda estaria agachado em uma caverna comendo carne crua. Nós só construímos a civilização com o fim de impressionar nossas namoradas.·.
                     
                      Orson Welles

I

O nome do livro em minhas mãos era A Extinção de um Gênero: a História das Mulheres no Terceiro Milênio, de T.W. Riparetti. 

A origem do Vírus Hemorrágico Uterino (VHU) tem sido o ponto de maior controvérsia na comunidade científica. Entre as teorias mais populares destacamos a que postula que o vírus VHU foi uma arma biológica que escapou do controle devido alguma falha de segurança laboratorial ou foi propositadamente disseminada entre a população por razões obscuras. Outra corrente teórica defende que o VHU fora originalmente concebido como uma terapia gênica para mulheres portadoras da Síndrome de Turner, mas sofrera uma mutação, tornando-se letal. Há também a crença popular de que o VHU fora um castigo divino a humanidade. O único consenso na comunidade científica é que todas as teorias carecem de evidências que a sustentem.
Indivíduos do sexo masculino são imunes ao vírus. O gene EFCYO, localizado no cromossomo Y e encontrado apenas neste, torna homens resistentes a infecção. Essa característica única do vírus reforça a hipótese de que se trata de um produto de laboratório. A infecção pode ser transmitida de um individuo a outro via aérea ou através de gotículas de saliva. Cabe também observar que homens, apesar de serem imunes ao vírus, são agentes disseminadores. O período de incubação do VHU é de seis meses. A portadora do vírus não apresenta qualquer sintoma nesse meio tempo. O primeiro sintoma é hemorragia interna no útero. À medida que a doença progride o sangramento torna-se mais intenso e incontrolável. A mídia da época popularizou a expressão a “praga vermelha”, nome informal dado ao vírus.

– Pai, como é uma mulher de verdade? – fora a pergunta de meu filho de dez anos.
– Bom, filho, elas não eram diferentes de sua mãe – respondi enquanto folheava o livro, procurando por uma das várias fotos de mulheres que havia ao longo da obra. –Veja! Aí está, é uma mulher como outra qualquer.
 Apontei para a foto, era a capa de uma revista de moda do século 21. Vogue era a palavra acima da mulher. Eu estava mentindo. Elas eram muito diferentes de uma ginoide.
– Mas a mãe não é de carne e osso – Nathaniel fez uma pergunta desconcertante.
– Acho que você tem razão – respondi lacônico.
 Fiquei em silêncio por um instante, pensando no que dizer.
– Mas porque você pergunta? Você não gosta da sua mãe? – indaguei curioso.
– Gosto sim, eu amo muito a mãe – disse Nathaniel, enfático.
– Então porque você quer saber como é uma mulher de verdade? – Nathaniel não respondeu.
Ele começou a folhear o livro com um olhar reflexivo, como se procurasse em suas páginas a resposta para minha pergunta.
Estudamos por mais uma meia hora. Janine colocou Nathaniel para dormir. Passando pelo corredor rumo a sala de ginástica eu podia ouvi-la cantando uma canção de ninar com a perfeição lírica que apenas uma ginoide é capaz.
Acendi as luzes da sala de ginástica, e lá estavam os androides de combate. Dei o comando de voz e uma unidade se ativou. Selecionei a modalidade karatê Shotokan, porque este era o estilo em que eu me considerava mais deficiente. Começamos a lutar. Após um bom combate subi para o meu quarto. Janine preparou um banho quente. Entramos juntos na banheira e transamos. Fui para a cama. Tinha uma entrevista às nove horas no Canal 23.

Alonzo Vargas era um homem gordo, muito gordo. Havia apenas quatro anos de diferença entre nós, sendo ele mais jovem do que eu, entretanto, sua obesidade o fazia parecer décadas mais velho. Suas roupas largas e coloridas lembravam um paraquedas aberto, e devo essa comparação graças a minha experiência com esse esquecido esporte radical. Seu sorriso excessivamente branco, pele sebosa e olhar abestalhado contribuíram para dar a ele um aspecto desagradável.
– Senhoras e senhores, aqui estamos com o nosso convidado de hoje. Mais uma vez conosco, Bruno Donovan, “o destemido” – disse Vargas para a câmera.
– Bom dia a todos – respondi secamente.
Pensava na palavra “senhoras” que Vargas usou para se dirigir ao público, e como, apesar de ginoides serem apenas máquinas, nenhum homem as via dessa forma.
– Bruno, alguns dizem que você é corajoso, outros dizem que você é louco, mas o fato é que suas extravagâncias e peripécias lhe renderam o apelido de “o destemido”. Diga-nos, após escalar as montanhas de Marte, mergulhar nos oceanos profundos das luas de Júpiter e ver as monstruosas e gigantescas criaturas que habitavam as suas gélidas águas qual o seu próximo projeto?
– Bom, Alonzo, para falar a verdade, acho que já fiz tudo que tinha para fazer nesse mundo...e em outros – dei uma leve risada constrangida.
– Vou fazer a pergunta que está na mente de todos: porque você se arrisca dessa forma? – Alonzo sempre fazia essa pergunta quando eu ia ao programa dele, e todas às vezes eu dava a mesma resposta.
– Olha, é difícil de explicar. Você nunca sentiu que falta algo na sua vida? – Alonzo me olhou como se eu estivesse falando outro idioma.
– Eu sempre senti um vazio que nunca consegui explicar. Não me entenda mal, tenho uma vida maravilhosa. Sou grato por isso. No entanto, por mais que eu compreenda que devia ser feliz, não me sinto plenamente feliz. Nunca me senti. E essa insatisfação, de alguma forma, é o combustível de minhas proezas – me surpreendi com o tom poético de minha resposta.
Entretanto, minhas próprias palavras não me convenciam, o que acredito ser a razão de Alonzo, e praticamente todo mundo que me abordava na rua, fazer sempre a mesma pergunta.
– Muito bem, vamos fazer uma retrospectiva de sua carreira. Vamos falar da vez em que você escalou o Monte Everest...
 Respondi às perguntas me esforçando aparentar interessado. Quando comecei a buscar por aventuras, alguns anos após a pane de minha mãe, nunca imaginei que seria alçado ao posto de celebridade mundial. “Não há mais nada interessante acontecendo no mundo. Você é a melhor notícia em trezentos anos”, me explicou Alonzo na primeira vez em que me procurou pedindo para lhe conceder uma entrevista.
Alonzo me convidou para almoçar num restaurante italiano próximo ao estúdio do Canal 23. Ele disse que as garçonetes eram as ginoides mais belas que havia na cidade. Entre uma conversa banal e outra, devidamente regada a vinho e massa da melhor qualidade, fomos abordados por um rapaz.
– Seu Bruno, posso ter uma palavrinha? – perguntou um jovem que parecia recém-saído da adolescência.
– Qual seria o assunto? – indaguei.
O rapaz ficou sem jeito, e então respondeu:
– Acho que seria melhor falarmos em particular.
– Bobagem. Alonzo é meu amigo. O que você tiver para me dizer pode falar na frente dele – respondi descontraído ao rapaz.
– Posso me sentar? – Alonzo e eu cruzamos olhares e meu amigo fez uma expressão como se estivesse dizendo “você decide”.
– Por favor, sente-se – disse ao jovem, indicando uma cadeira.

Graças a tarefa de ajudar meu filho no seu dever de casa terminei desenvolvendo um gosto inesperado por história. Meu foco de interesse eram as partes obscuras e inexplicáveis, e que no meio acadêmico não passavam de lendas e mitos. Como, por exemplo, a cidade perdida de Atlântida, o acidente em Roswell e a lenda moderna da última mulher da Terra. Segundo essa lenda, quando a epidemia do vírus VHU alcançou níveis assustadores uma mulher teria sido colocada em estado criogênico e escondida em algum lugar. As explicações sobre quem teria feito isso e onde estaria essa mulher eram das mais diversas. Alguns diziam que teria sido um trabalho da extinta ONU e que a mulher estaria em uma base secreta na lua. Outros, que a Corporação Saiteki teria uma mulher preservada em seus laboratórios.
No entanto, não havia o menor indício de que tal mulher existisse. Some-se o fato de que há trezentos anos a criogenia era uma ciência incipiente. De cada dez tentativas de preservar um ser humano em animação suspensa, nove resultavam na morte do indivíduo. Além disso, nenhuma tentativa de hibernação por um longo período havia sido bem sucedida. Não era de se surpreender que essa história tenha sido relegada a categoria de lenda.
Portanto, nada do que o jovem, que durante a conversa se identificou como Theodoro Antunes, me contou era novidade. Por outro lado, Alonzo escutara o rapaz, que preferia ser chamado de Theo, atentamente. Apesar de conhecer a lenda da última mulher da Terra, Vargas não estava familiarizado com suas nuances.
– Tudo bem, garoto. Importa-se de ir direto ao ponto? – pedi impaciente.
– Eu acho que descobri onde está a última mulher da Terra – novamente Alonzo e eu cruzamos olhares, e desta vez trocando uma expressão mútua de espanto.
– Eu lido com computadores, manutenção, análise de sistemas, essas coisas... Eu faço uns trabalhos free-lance para o governo de vez em quando. Fui contratado para recuperar dados de um servidor das antigas Forças Armadas que haviam sido perdidos por uma falha do sistema. Como hoje não existe mais exército, o governo queria recuperar esses dados pelo seu valor histórico. Preservar a memória de uma instituição extinta, esse tipo de coisa. Enquanto eu fazia esse serviço, acidentalmente recuperei um arquivo. É uma cópia que fora apagada do servidor há cerca de trezentos anos.
– O que tem nesses arquivos? – indaguei curioso.
Theo apoiou os cotovelos na mesa, se aproximou de nós e sussurrou:
– São dados de um experimento de criogenização.
– E? – perguntou Alonzo, indiferente.
– Prestem atenção. A cobaia, no experimento, é identificada apenas pelas iniciais XX. Entenderam? Cromossomos XX? E sabem o que é mais estranho? As coordenadas de latitude e longitude onde está localizado o casulo. É uma região selvagem bem no meio da Floresta Amazônica! Por que motivo o exército haveria de colocar um laboratório de criogenização num local de tão difícil acesso? – disse Theo, inquisitivamente.
– Posso pensar em inúmeros motivos – respondi.
– Você não está interessado em saber o que tem nesse casulo? – perguntou-me Alonzo, ciente de que eu já estava cogitando uma nova aventura.
– Tudo bem, garoto. Vamos supor que você esteja certo. Por que você está me contando isso? – perguntei.
– Porque eu quero que você encontre o casulo, e quero que me leve com você na viagem – respondeu Theo, ansioso.
Perguntei a Theo por que ao invés de me procurar ele simplesmente não informou as autoridades. O jovem respondeu que meu discurso na televisão o inspirou, que também não se sentia plenamente feliz e que essa era a grande chance de fazer algo diferente.
– Você sabe que, se o garoto estiver certo, isso irá revolucionar o mundo. Imagine como homens reagiriam ao descobrirem que ainda existe uma mulher viva no mundo. Vocês já pararam para pensar na repercussão e nas consequências? – refletiu Alonzo.
– Espera, espera, espera! – interrompi Alonzo e Theo. – Não temos a menor ideia do que há nesse casulo. Sequer sabemos se ainda está lá. Então, antes de perdemos tempo com conjecturas vamos descobrir o que há no meio da floresta.
Alonzo chamou a garçonete, pagou a conta e se levantou. Antes de ir embora, virou-se para mim e disse:
– Se você encontrar algo nessa expedição, quero ser o primeiro a saber. Vamos fazer uma reportagem exclusiva. Você tem meu número.
– Então? Você topa? – perguntou Theo com um brilho infantil nos olhos.

Sempre que me preparava para uma nova aventura, um misto de entusiasmo e medo tomava conta de mim. Pensava em tudo o que poderia dar errado. Eu poderia sofrer um grave acidente ou até mesmo morrer. Nunca mais veria meu filho ou Janine. Contudo, meus temores eram contrabalanceados pelo desejo de enfrentar o desconhecido. O que haveria escondido há séculos no meio da floresta? Eu precisava descobrir. Desvendar o mistério do casulo se sobrepunha ao sentimento de cautela. O conflito interno me atormentava. Por um lado, queria ficar na segurança de minha casa com meu filho e minha ginoide. Por outro, queria me arriscar. Não poderia passar o resto da minha vida imaginando como teria sido se eu tivesse escalado as montanhas de Marte, mergulhado nos oceanos das luas de Júpiter, entre outras proezas que realizei ao longo dos meus cinquenta anos de idade. Esse sentimento de “o que poderia ter sido?” era insuportável. Portanto, sempre me decidia em favor da aventura.
Essa hesitação era a mesma que me assombrara em outras ocasiões. Já estava acostumado, e aprendi que a melhor forma de lidar com isso era me mantendo ocupado. Comecei a treinar com uma intensidade maior do que o normal. Barras, abdominais, levantamento de pesos, corridas. A experiência me ensinou que em situações de perigo, um corpo em boa forma é a diferença entre a vida e a morte.
Fui para a sala de ginástica praticar artes marciais. Programei os androides para nível máximo de dificuldade. Foi uma luta e tanto. Eu contra três máquinas. Nunca tinha lutado com tantos ao mesmo tempo. Estava cansado, suado, com alguns hematomas, mas não preocupado. Havia um protocolo de segurança na programação dos androides que os impediam de me ferir gravemente. Entretanto, confesso que sempre tive vontade de desligar os protocolos, mas nunca tive coragem. Se fizesse isso, o combate se tornaria letal, tal qual acontecia com os gladiadores de Roma que eu lera a respeito.
Ouvi a voz de Nathaniel. “Pai”, essa simples palavra foi o suficiente para me distrair. O shuto de um androide acertou minha mandíbula em cheio. Quando eu me dei por conta estava caído.
Dei um comando de voz para pausá-los. Nathaniel veio correndo em minha direção e me abraçou.
– Desculpa, pai.
– Tudo bem, filho. Não foi culpa sua – disse, abraçando-o.
Nathaniel queria que eu o ajudasse nos seus estudos. Estava tão envolvido com os preparativos de minha expedição que não pude atendê-lo. Theo e eu partiríamos em duas semanas. Passei a última semana organizando os mantimentos, equipamentos e estudando todo o material que eu pude encontrar sobre a Floresta Amazônica. Podia ter mandado Janine ajudar Nathaniel com seus estudos, mas sabia que ele preferia a minha companhia.
Fomos para a biblioteca. Nathaniel sentou no meu colo, e abrimos o capítulo sete do livro A Extinção de um Gênero: a História das Mulheres no Terceiro Milênio.

No período que ficou conhecido como A Segunda Idade das Trevas, as mulheres morreram aos bilhões em questão de décadas. Estima-se que pereciam em média vinte e cinco milhões de mulheres por ano ao redor do planeta, vítimas da Praga Vermelha.
O sexo feminino tornou-se precioso. Os países que conseguiram salvar algumas poucas mulheres logo entraram em atrito com outras nações. Este foi o estopim que deu início a era da Guerra da Praga Vermelha. O mundo foi assolado por versões modernas da Guerra de Tróia, que ocorreram simultaneamente nos quatros cantos do globo. Homens se engajaram em um conflito que levou a morte de bilhões.
No começo homens resistiram às ginoides. A ideia de substituir suas mães, irmãs, filhas e esposas por máquinas desagradavam a população masculina em geral. Todavia, a necessidade de companhia feminina foi mais forte e homens terminaram cedendo.

Oito da manhã. Eu estava no cais levando os mantimentos e todo o material necessário para o barco. Do lado oposto ao Rio Amazonas, podia-se ver androides carregando pesadas toras de madeira para um armazém. Conseguir um meio de transporte não foi fácil. Tudo era automatizado e há séculos que nenhum ser humano entrava na floresta. A extração de madeiras e minerais em regiões de difícil acesso era realizada pelas máquinas. Portanto, tudo o que consegui foi uma antiga embarcação pesqueira reformada e pilotada por um androide. Ao dizer quais eram minhas pretensões o dono do barco, um sujeito de sobrenome Gomes, encarou-me como se eu fosse louco.
– Porque você não usa um androide para chegar a essas coordenadas que você quer? Tenho um muito bom com ótimas câmeras instaladas. Você pode acompanhar todos os seus movimentos e inclusive controlá-lo via computador – disse o dono do barco, olhando para o mapa que eu tinha em mãos.
– Não, obrigado – respondi com um sorriso gentil.
– Talvez seja uma boa ideia, Bruno. Porque não mandamos o androide? – disse Theo, preocupado.
– Escuta, se você não quiser ir eu entendo. Sei que isso é perigoso e você não está acostumado com esse tipo de situação – respondi condescendente.
Theo ficou em silêncio por um breve momento.
– Não, tudo bem. Eu vou – ele disse nervoso.
Subimos no barco. Partimos em direção ao norte do Rio Amazonas.



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