quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Sabine




(inspirado numa história de Marcel Aymé)

Á espreita, na calada da noite, escondida entre os arbustos próximos a janela, Sabine observava sua família. Estavam todos sentados em volta da mesa na sala de jantar. Seu marido ocupava a ponta, e a filha, ao lado esquerdo, conversava com o pai. A cor dos cabelos de Fernando a surpreenderam. Sabine nunca imaginou que seu esposo em pouco mais de uma década adquiriria tantos fios grisalhos.
E Bianca, ela era uma mulher adulta agora. Tinha 18... não...19 anos. Sabine esteve tanto tempo fora que se confundia. Ela lembrava-se de quando Bianca era criança, e, como ela costumava sentar-se em seu colo para que, em frente ao espelho localizado acima da cabeceira, no quarto onde dormia com seu esposo, Sabine escovasse os longos cabelos castanhos escuros de sua filha, um dos muitos traços o qual compartilhava com a menina, antes de colocá-la na cama.
Olhar para Bianca era como olhar para uma foto de si mesma quando jovem, A mente de Sabine não pode deixar de traçar um paralelo entre esta constatação e o seu primeiro encontro com a senhora Kosugi.

– Seja bem-vinda, Senhorita Lemos. Por favor, entre – disse Isadora, uma jovem asiática de cabelos lisos que iam até a cintura, ao abrir a porta.
Sabine adentrou o hall de entrada. Um longo corredor, cujas paredes expunham belos quadros, a levaram a presença da senhora Kosugi.
O bom gosto e o luxo predominavam na sala. O lugar era tão rico em detalhes decorativos, que iam desde os cristais nos lustres aos pequenos enfeites espalhados em mesas e estantes, passando pelo estofado vermelho rubro das poltronas.
No centro, sentada em uma poltrona, e com os pés esticados num banquinho, uma senhora idosa encontrava-se reclinada saboreando um drinque.
– Por favor, minha querida. Sente-se – pediu a amável senhora. – Isadora, sirva um drinque a nossa estimada advogada.
– Não, obrigado. Não precisa – respondeu Sabine, desajeitada, pois não intencionava fazer desfeita a sua anfitriã.
Miranda Kosugi era uma cliente importante. A firma de advocacia em que Sabine trabalhava cuidou por décadas dos assuntos jurídicos de seu falecido esposo. A viúva herdara toda a fortuna que seu companheiro, um proeminente executivo da Corporação Saiteki, conquistara, e junto com esta, os serviços prestados pelos empregadores de Sabine.
Sabine estava em plena ascensão dentro da empresa. Ela ganhara casos importantíssimos, e, se continuasse nesse ritmo, em pouco tempo poderia ser promovida a sócia-júnior, o que implicaria uma participação nos lucros. Porém, Sabine não se importava com o dinheiro em si, embora admitisse que esta era uma forma agradável de ser reconhecida. O que ela realmente amava era advogar. Sabine adorava conhecer a lei a fundo, amava estudá-la em seus mínimos detalhes e aprender todos os seus mecanismos.
Por reconhecerem o valor de Sabine, os seus superiores entregaram em suas mãos um de seus mais importantes clientes.
– Então, senhora Kosugi, o que posso fazer por você? – indagou Sabine, enquanto observava Isadora, admirada da semelhança entre mãe e filha.
– Diga-me. É possível fazer um testamento deixando sua herança para uma ginoide?
– Bom, as ginoides não tem direito algum reconhecido pela lei. São máquinas. Deixar uma herança para uma ginoide seria como tentar deixar uma torradeira de herdeira – Sabine respondeu curiosa.
A senhora Kosugi se levantou, auxiliada por Isadora, que a conduziu até uma estante repleta de porta-retratos.
– Veja, este é meu falecido marido – disse, apontando para um franzino asiático de óculos, que posava ao lado do endoesqueleto de uma ginoide.
Sabine passou os olhos em volta dos porta-retratos. E então se deparou com fotos da senhora Kosugi quando jovem. A semelhança entre ela na juventude e sua filha era impressionante.
– Você não vê nada de incomum nestas fotos? – inquiriu a senhora, num tom de voz em que claramente visava testar a perspicácia de sua advogada.
Sabine observou as fotos atentamente. A vida da senhora Kosugi e seu falecido esposo transcorreram perante seus olhos. Infância, aniversários, casamentos, viagens. Então Sabine notou o que havia de errado.
– Isadora, não há fotos de Isadora – disse, ao perceber que não havia fotos da jovem, nem do nascimento, nem quando criança ou adolescente. Nenhum aniversário, baile de debutante ou formatura.
Nada. Isadora simplesmente não era um personagem na história contada por aquelas fotos. A única exceção era sua fase adulta. Fotos de Isadora, já moça, ao lado de sua mãe em eventos e festas abundavam, contrastando com o vácuo dos primeiros anos de vida.
Como mãe, Sabine estranhou essa ausência.                                                          
– Muito bom, Sabine. Você é a primeira pessoa a perceber isso – afirmou a senhora Kosugi. – Isadora, traga o capacete.
Isadora saiu do recinto, voltando em mãos com um capacete negro. Era um capacete de realidade virtual, semelhante ao que sua filha Bianca usava quando brincava com jogos no computador.
Isadora parou em frente a Sabine, e sob o comando da senhora Kosugi, lhe entregou o capacete.
– Vista – pediu educadamente a senhora.
Sabine colocou o dispositivo em sua cabeça. Escuridão total. Então uma imagem apareceu.
Ela viu a si mesma.
Sabine moveu a cabeça para o lado direito e viu a senhora Kosugi. Virou a cabeça para frente e novamente viu a si própria. E ao virar para o lado esquerdo viu um espelho.
Ao invés de ver seu próprio reflexo, ela viu Isadora.
Sabine removeu o capacete, surpresa, e antes que pudesse fazer qualquer questionamento, a senhora Kosugi interviu.
– Sim, minha cara. Isadora é uma ginoide.
A senhora retirou um porta-retratos da estante. Era uma foto sua quando jovem.
– Meu marido, que Deus o tenha, me amava muito. E queria fazer por mim algo que nenhum homem jamais fizera por uma mulher – suspirou a idosa.
– Não estou entendendo... – Sabine não queria dizer isso, mas a frase escapou.
– Alguns homens ordenam que se construam palácios para suas amadas, outros contratam os melhores artistas para fazerem pinturas de suas esposas. Meu marido foi além, ela contratou os melhores roboticistas da Corporação Saiteki para construírem uma ginoide idêntica a mim. Este era seu presente. Ele dizia que essa era sua prova de amor a mulher de sua vida, e que minha beleza estaria para sempre em sua figura – a senhora Kosugi segurou uma pequena lágrima, que insistia em escorrer de seus olhos. – Eu nunca imaginava que as pessoas fossem pensar que Isadora era minha filha. Ao ouvirem falar da presença de uma jovem semelhante a mim em nossa mansão todos os tipos de boatos começaram. Como nunca senti que devia satisfação a ninguém, deixei o mundo pensar o que quisesse.
– Qual a função do capacete de RV? – perguntou Sabine, intrigada.
– Veja bem, minha querida. Sou uma mulher idosa e solitária. Isadora é o meu contato com o mundo exterior. Usando o capacete de RV eu enxergo tudo o que ela enxerga, e com este computador – ela apontou para o aparelho na cômoda – eu controlo todos os seus movimentos.
Sabine entendera o que se passara. Através da ginoide a senhora Kosugi estava revivendo sua juventude.
 – Quando eu não estou controlando Sabine, ela é uma inteligência artificial plena, capaz de cuidar de si e de outros – disse a senhora Kosugi, postando-se ao lado da ginoide. – Isadora é minha única companhia nos anos de velhice, senhorita Lemos. Ela cuida de mim, conversa comigo, faz a minha comida, controla meus medicamentos. É por isso que desejo deixar minha fortuna para ela.
– Bom, senhora Kosugi. O seu caso é complicado. Até hoje ninguém conseguiu o direito de partilhar seus bens com uma ginoide. Terei que analisar com maior cuidado.

A revelação trouxera a advogada possibilidades antes impensadas. Ela se sentia sobrecarregada. Sabine amava sua filha, amava seu marido, amava sua casa e todas as tarefas domésticas que vinham com esta. Ela queria ser uma boa mãe, queria ser uma boa esposa, queria se dedicar ao lar, se dedicar aos que amava.
Contudo, ela queria muito ser advogada. Desejava construir uma carreira digna. Porém, conciliar a vida de mãe e esposa com a vida de advogada tornava-se cada vez mais difícil. Se ela dedicava-se ao lar, sentia-se traindo sua carreira. Mas ao se dedicar a carreira, sentia-se negligenciando aqueles a quem amava.
Sendo assim, Sabine tomou uma decisão. Ela abandonou seu lar há doze anos. Mudou de cidade. Conseguiu um bom emprego em outra firma de advocacia. Alterou sua cor de cabelo, cor dos olhos e tudo mais que estivesse ao seu alcance. Sabine, a mãe de Bianca e esposa de Fernando, daria lugar a Sabine, a advogada, e desta vez para sempre. 

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

A Mulher Imperfeita (trecho)





    O homem quer satisfazer seu único desejo com todas as mulheres.
                                                 A mulher quer um único homem que satisfaça todos os desejos dela.

 Ditado popular estadunidense

Hospital Santa Casa de Misericórdia, Porto Alegre, uma e meia da madrugada.

 Os estalos dos saltos agulha nos corredores do hospital rompiam o silêncio da noite. À medida que o som agudo aumentava, o doutor Gustavo Moraes sabia que em breve a porta de seu consultório seria aberta.
– Mandou me chamar, doutor? – perguntou a enfermeira Carine.
O doutor se levantou da cadeira e deu uma volta de 360 graus em torno da enfermeira. Os cabelos longos eram escuros, ondeados e, somados a sua pele branca, olhos verdes e um corpo de medidas perfeitas, formavam um agradável conjunto que apetecia os olhares masculinos. A ausência de constrangimento do doutor em admirar Carine contrastava com a total indiferença dela, que alheia a expressão lasciva do médico, permanecia de pé, com a postura elegante de uma candidata de concurso de beleza e um sorriso que lembrava um anúncio de pasta de dente.
– Sim, Carine. Quero que você faça algo para mim – respondeu o médico.
Não era a primeira vez que Gustavo Moraes se encontrava naquela situação. Mas aqueles foram outros tempos, antes da administração do hospital intervir. Ele sabia que não conseguiria o que desejava de Carine, entretanto, o plantão médico pode ser muito solitário. O desejo sexual de Gustavo era tão intenso que se sobrepunha a sua capacidade de aceitar os fatos, dando-lhe uma ilusória faísca de esperança e impedindo o doutor de aceitar o fato que desta vez, ao contrário das anteriores, não teria aquilo que tanto desejava.
– Carine, quero que você tire a roupa e se deite na mesa de exames – ordenou.
A enfermeira levou suas mãos até o botão no topo de sua blusa, cujo decote expunha fartos seios, e quando tudo indicava que Carine estava prestes a ficar nua, ela repentinamente afastou as mãos das roupas.
– Sinto muito. Não tenho permissão para executar esta ação. Para maiores informações entre em contato com a administração. Obrigado – disse Carine, com a face gélida e uma voz impessoal que nada lembrava o jeito dócil da enfermeira momentos antes.
– Porcaria – esbravejou o doutor em voz alta. – Maldita hora que a administração do hospital colocou essa droga de bloqueio nas ginoides.
“Doutor Gustavo Moraes, apresente-se imediatamente a sala de emergência”, era o aviso vindo da caixa de som em sua mesa, interrompendo seu monólogo raivoso.
Rapidamente o doutor saiu de seu consultório, acompanhado da ginoide modelo DDI-65. A chegada do doutor e de Carine à entrada da sala de emergência coincidiu com a dos paramédicos que carregavam dois homens em macas.
– O que aconteceu? – perguntou a um paramédico.
– Temos duas vítimas de espancamento.
A informação surpreendeu Gustavo Moraes. Sendo um médico experiente em prontos-socorros, ele já havia atendido muitas vítimas de acidentes de carro, e dado o estado dos homens nas macas, julgou que se tratava de mais um caso de acidente automobilístico.
Um dos homens começou a ter uma convulsão. Os paramédicos tentaram imobilizá-lo. Gustavo Moraes ordenou a Carine que aplicasse uma injeção de fenobarbital enquanto examinava o paciente com o seu aparelho de Raio-X portátil, constatando que o homem sofrera uma grave fratura na região cervical.
No meio do caos do atendimento, o médico não percebeu que havia, nas portas abertas da traseira da ambulância, estacionada perto da entrada do hospital, que encontrava-se escancarada, uma sacola preta, de onde podia-se ver longos cabelos loiros no qual do crânio destroçado saiam circuitos quebrados e fios de todas as cores.

Condomínio Dorea Rocha, Porto Alegre, duas semanas antes.

Da mira de sua espingarda Rodrigo observa o gueopardo caminhar pela savana. Alguns metros a frente há um riacho. Uma zebra tranquilamente beberica a água. O gueopardo aproxima-se. Um declive separa os dois animais. Da extremidade alta do declive, o gueopardo acompanha os movimentos de sua presa. O animal permanece imóvel. A zebra segue bebendo. O gueopardo estica suas pernas esguias e joga seu corpo para trás. Rodrigo move sua espingarda, ora para a esquerda, ora para a direita, tentando a todo custo acompanhar os movimentos de ambos os animais. Aponta a espingarda para a extremidade alta do declive. O gueopardo desapareceu. Ele quase não consegue enxergar o animal descendo o declive, pois este move-se a uma velocidade inacreditável. A zebra percebe o predador avançando e foge assustada. Uma perseguição tem início na savana africana.  A zebra corre, corre, corre, mas o gueopardo, que ganha mais e mais velocidade, dá passos cada vez maiores, e finalmente abocanha a garganta da zebra em plena corrida. O animal se debate agonizado. Sangue e pedaços da zebra escorrem pelos cantos da boca do gueopardo enquanto Rodrigo acompanha a cena pela mira de sua espingarda. Seus músculos estão tensos. O dedo indicador suado resvala no gatilho. Ele morde o lábio inferior. Respira fundo. Não tem certeza se este é o melhor momento para atirar.
– Amor, a comida está na mesa – uma suave voz feminina o informa, quebrando momentaneamente sua concentração.
– Já estou indo – responde Rodrigo.
Hora de tomar uma decisão, ou atira no gueopardo ou dá pause no jogo. Rodrigo detesta dar pause. Sempre considerou o pause uma forma de trapaça. Não há mais dúvidas. O gatilho é apertado. O gueopardo cai morto por cima da falecida zebra. O predador se torna presa. Rodrigo vibra com sua vitória.
Após algumas horas com o capacete de realidade virtual na cabeça Rodrigo já esperava sentir uma leve dor no pescoço. Esses novos modelos são mais leves que os modelos antigos, mas não importa a leveza, os capacetes ainda assim possuem algum peso e esse tinha seu efeito na coluna de jogadores compulsivos de Savana Assault. No entanto, a dor no pescoço não era nada que uma massagem de Priscila não amenizasse.
A visão da picanha assada no forno, acompanhada de salada de batata com maionese que o aguardava, era uma obra digna de um excelente chef de cozinha, e ele não podia esperar menos de Priscila, que estava de costas na pia, lavando a louça, usando nada além de um avental. Rodrigo gostava de saborear sua refeição observando as nádegas firmes e salientes dela, enquanto a loira se ocupava com seus afazeres domésticos.
Ao terminar sua refeição, Rodrigo levanta da mesa e coloca os braços em volta da cintura de Priscila. Ele coloca as mãos por dentro do avental e começa a acariciar os seios nus, ao mesmo tempo em que pressiona as nádegas dela contra sua virilha. Ela imediatamente larga os pratos, a esponja e se vira para beija-lo.
A campainha toca uma vez. Rodrigo beija Priscila. A campainha toca pela segunda vez. Rodrigo abaixa o avental de Priscila e mordisca os bicos de seus seios. A campainha toca pela terceira vez. A excitação sexual de Rodrigo esmorece.
Do outro lado da porta um rapaz franzino, com uma sacola na mão direita, está prestes a tocar a campainha novamente, quando um irritado Rodrigo abre a porta. Ao perceber quem é, o dono da casa adota um semblante de camaradagem.
– Oi, Rodrigo. Tudo bem? – disse o jovem.
– Tudo ótimo, Adriano. Entra.
A diferença física entre os dois homens era gritante. Rodrigo tinha ombros largos e um corpo rechonchudo. Seu queixo era quadrado e sua voz possuía um marcante tom de barítono. Adriano por sua vez, era muito menor, seus ombros eram pequenos e encolhidos. O queixo fino desaparecia atrás de uma espessa barba que cobria seu rosto, e sua voz, que oscilava entre o agudo e o médio agudo, lembrava a de uma criança recém-entrada na puberdade.
Rodrigo convida Adriano a se sentar, e da sala grita para Priscila trazer uma cerveja ao amigo. Adriano diz que não é necessário, mas mal termina de dizer tais palavras e lá está ela, seminua, a sua frente. Um tanto constrangido Adriano aceita a bebida. Rodrigo não deixa de notar a forma como seu amigo dispersa o olhar ao redor da sala, evitando encarar Priscila.
– Sabe, nunca vou entender o que você tem contra ginoides – comentou Rodrigo.
– Não tenho nada contra ginoides. Apenas não acho que seja normal um homem se relacionar com uma máquina.
– Agora você está parecendo aqueles fanáticos religiosos ciberfóbicos, ou pior, aquelas doidas feministas que odeiam ginoides.
– Não é isso. Acredite, não sou preconceituoso – disse Adriano, em tom de desculpa. – É que eu não acho que ter uma namorada robô, ou seja lá como você chame o tipo de relação que você tem com Priscila, seja saudável. Quer dizer, você não sente falta de ter uma mulher real ao seu lado? Alguém que também tenha sentimentos e compartilhe esses sentimentos com você?
– Mas Priscila tem sentimentos.
– Priscila não tem sentimentos. Ela é uma inteligência artificial e tudo que ela possui são reações físicas programadas que simulam emoções. Se ela ri é um programa, se ela chora é outro programa. Ela não é capaz de sentir emoções.
– Como você pode afirmar com tanta certeza que inteligências artificiais não possuem sentimentos?
– É o que os cientistas dizem.
– Os cientistas? O que sabem eles? Há muito tempo atrás, século 19, se não me engano, você sabe que história não é meu forte, cientistas diziam que era impossível ultrapassar a velocidade da luz. Sabia disso? – Adriano recebeu a informação de Rodrigo com certa surpresa. – Se você quer saber algo sobre ginoides é preciso conviver com elas. Convivo com ginoides desde que eu era adolescente e afirmo que os sentimentos de Priscila são tão verdadeiros como os meus e os seus.
– Mas mesmo que inteligências artificiais possuam sentimentos, você não se sente incomodado em saber que uma máquina possa ter afeto por você? A mim isso me causa calafrio, sinto muito se lhe ofendo, mas estou sendo franco.
– Não me incomoda nem um pouco – respondeu Rodrigo. – Para falar a verdade não me importo se Priscila tem sentimentos ou não, o que importa é que eu tenho sentimentos por ela, e isso me basta.
– Então você admite que ginoides talvez não possuam sentimentos?
– Sim, admito. É uma possibilidade.
– Suponha que eu esteja certo, suponha que inteligências artificiais não possuam sentimentos. Nesse caso, se ginoides não tem sentimentos, então quando uma ginoide diz “eu te amo”, por mais sentimento que ela coloque na entonação nas palavras, por mais que seu rosto expresse emoções e por mais sincero que pareça, não é verdadeiro. Isso não te incomoda?
– Você fala como se os seres humanos fossem sempre sinceros. Diga-me, você acredita mesmo que casais humanos são sempre sinceros quando dizem “eu te amo” um ao outro?
Os comentários de Rodrigo feriam Adriano não pela acidez em si, mas pela possibilidade de que ele poderia estar certo. Não era raro Adriano perguntar a si próprio se talvez ele não fosse ingênuo demais, e por esta razão não enxergasse a realidade como de fato é.
 Adriano decidiu tentar uma abordagem diferente, e perguntou, com secura, a Rodrigo:
 – Você ama Priscila?
– Sim, eu a amo – respondeu de uma forma que Adriano não soube dizer se suas palavras eram sinceras.
– Aposto que você devia amar também a modelo anterior que você tinha. Como era mesmo o modelo? NHA-69 ou algo assim....
– NHA-59 – corrigiu Rodrigo.
– Mas mesmo assim você a vendeu e comprou esse modelo novo. Como é mesmo o nome?
– RBL-73 – chamo todos os modelos de ginoides que eu compro de Priscila porque gosto da sonoridade. Pris-ci-la, Pris-ci-la – repetiu lentamente o nome, como se estivesse tendo um regozijo ao separar as sílabas.
– Isso, RBL-73, fazem tantos modelos diferentes que eu esqueço os nomes. Mas, voltando a pergunta, como você pode dizer que ama Priscila se basta lançarem um modelo novo para que você se desfaça dela? Como você pode dizer que a ama se a trata como mercadoria?
– Eu digo que amo Priscila porque ela me faz feliz tanto quanto minha antiga ginoide. E se lançarem no mercado uma ginoide que me faça mais feliz que Priscila pode ter certeza que vou me desfazer dela. Amor é isso, você ama pessoas pelo que elas podem fazer por você. Nada mais. Quantos relacionamentos acabam porque uma das partes encontrou alguém que satisfaz melhor suas necessidades? Quantos homens não trocam sua esposa por uma mulher mais jovem? Quantas mulheres não abandonam seus maridos por homens mais ricos? O que eu e outros ciberssexuais fazemos não é nem um pouco diferente. Homens e mulheres se tratam como mercadorias o tempo todo. Se você vai me julgar, então os julgue também.
– Mas isso não é amor – Adriano insistiu. – Amor é quando duas pessoas se encontram, sentem uma atração especial uma pela outra e querem ficar juntas. Você não pode ter esse sentimento com uma ginoide. E sabe por quê? Ginoides são todas iguais. Elas não tem vontade própria, não tem personalidade. Ginoides existem apenas para servir aos seus usuários. Duvido que você seja capaz de dizer uma única característica que diferencie Priscila de todos os modelos que você teve antes.
– Claro que posso dizer que havia características diferentes entre um modelo e outro – respondeu Rodrigo, que pausou para tomar um gole de cerveja. – Os modelos da série RBL-73 têm seios ajustáveis. Priscila pode aumentar e diminuir o tamanho dos seios conforme o gosto do usuário. Comprei Priscila porque o meu modelo antigo não tinha seios ajustáveis e, por incrível que pareça, chega uma hora que enjoa transar sempre com uma mulher de seios enormes. É bom variar e.....
– Falo de características como pessoa, Rodrigo.
– Como pessoa?
– É, do que elas gostam, o jeito como elas falam, o que elas pensam, desejam. É disso que estou falando, dessa singularidade que todo ser humano, e apenas humanos, possuem, que faz com que você queira se relacionar com outra pessoa.
– Eu me “relaciono” muito bem com Priscila, se é que você me entende – disse Rodrigo, numa tentativa de ser engraçado.
– Você entendeu o que eu quis dizer – falou Adriano, decepcionado.
– Olha, Adriano, ao contrário do que você pensa, Priscila tem uma personalidade. Eu sei, é uma personalidade moldada de acordo com os gostos e desejos do usuário, mas ainda assim é uma personalidade, e isso, no final das contas, é o que importa.
– Mas Priscila não é humana, ela não o ama de verdade! – retrucou Adriano, quase estridente.
Adriano ficou constrangido por erguer o tom da sua voz de forma tão aguda. Um certo receio, que Rodrigo não entendeu a razão, transpareceu nos gestos de seu amigo, que levava a mão a boca e tossia. Adriano tomou um demorado gole de cerveja e silenciou-se.
– Já que estamos falando em compra e venda de ginoides, veja isso – Rodrigo retomou a conversa, ligando o computador.
Ele encostou gentilmente a mão em uma pasta na tela do computador e a imagem de uma loira apareceu.
– Esse é o novo modelo SDA-79. Sabe quando eu falei que é enjoativo transar sempre com uma mulher de seios grandes, e como às vezes seios pequenos são bacanas? Transar com loiras também pode enjoar, e foi pensando nisso que a Corporação Saiteki criou esse modelo. Vai ser lançado no mercado daqui a alguns meses, mas já está a pré-venda.
Rodrigo deu um segundo toque na tela e a loira na imagem aos poucos começou a se transformar. Seus cabelos lisos e dourados foram substituídos por cabelos encaracolados e castanhos. Sua pele clara adquiria gradativamente um tom marrom. Ao fim da transformação a loira na tela do computador deu lugar a uma sensual mulata.
– Não é sensacional? – disse um empolgado Rodrigo a um Adriano cujo olhar expressava uma mal disfarçada indignação perante a imagem na tela. – Basta o usuário dar o comando que a SDA-79 se transforma de uma loira em uma morena, ou em uma ruiva ou até mesmo uma mulata. Agora você pode ter todas as mulheres que desejar numa única. A SDA-79 é o harém de uma mulher só.
Priscila entra na sala. A naturalidade com que ela caminha seminua pelo apartamento deixa Adriano perplexo.
– Amor, me faça uma massagem – ordenou Rodrigo. – Já encomendei a minha SDA-79. Deve chegar daqui a alguns meses. Quanto a Priscila acho que consigo um bom preço por ela numa loja de ginoides usadas.
– Não fale assim na frente dela! – disse Adriano, novamente com um timbre de voz agudo.
– Qual o problema? Não foi você quem disse agora a pouco que ginoides são máquinas sem sentimentos? – retrucou Rodrigo, um pouco irritado.
Adriano não respondeu. Enquanto a ginoide movimentava seus dedos pelo pescoço de Rodrigo, que soltava pequenos gemidos de satisfação, Adriano a contemplava e refletia sobre sua reação. Priscila era humana em todos os aspectos pelo qual podia-se tomar por critério de julgamento. Não fosse o comportamento subserviente, e a perfeição de seu corpo, somados a indiferença com que a ginoide cumpria suas funções, era impossível distingui-la de uma mulher humana. Adriano havia finalmente compreendido como era fácil se deixar enganar pelas aparências e esquecer que Priscila era uma máquina.
– Bom, acabei me esquecendo a razão pela qual passei aqui – falou Adriano, retirando um pacote de sua sacola, e entregando-o ao amigo.
Rodrigo abriu o pacote e viu a torta de maçã.
– Fui eu quem fiz. Espero que goste – disse Adriano, sorrindo.
Rodrigo apreciava a amizade de Adriano, mas não podia deixar de estranhar os gestos de seu amigo. Não era a primeira vez que o presenteava, e quando saíam juntos, Adriano sempre insistia em pagar a conta. A ideia de que ele fosse homossexual cruzou a sua cabeça em mais de uma ocasião. Isso explicaria tanto o jeito efeminado de seu amigo quanto a sua implicância com as ginoides. No entanto, como Adriano nunca havia passado do ponto de fazer meros agrados, Rodrigo não via razão para traçar um limite. Além disso, se sentiria um hipócrita se deixasse de conviver com seu amigo por causa de sua orientação sexual, sendo que o próprio Rodrigo, por causa de suas preferências sexuais, também era vítima de preconceito.
– Adriano, meu irmão está na cidade. Ele veio visitar meus pais e haverá uma janta na casa deles. Você não gostaria de ir?
– Sim, é claro – respondeu feliz. – Mas, por que você quer que eu vá a uma reunião de sua família?
– Bem...sabe...meus pais são antiquados. Eles têm aquela visão preconceituosa que ciberssexuais são pessoas doentes que não se relacionam com ninguém e passam o tempo todo satisfazendo suas perversões sexuais com ginoides. Se você for, mostrarei a meus pais que sou como todo mundo, que tenho amigos e uma vida social, e que só porque optei por me relacionar com uma máquina isso não me torna diferente de ninguém.
– Tudo bem, pode contar comigo, quando será o jantar?

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

A Casa da Dor




Em todo homem dormem, virtuais, os desejos sujos alimentados pelos eflúvios do sangue e da carne!

 Villiers De L´isle–Adam

Senhoras e senhores do júri, quero começar agradecendo a oportunidade que me foi concedida. Como réu sou, obviamente, o principal interessado em minha defesa, e devo dizer que, embora esteja satisfeito com os serviços de meu advogado ao longo deste julgamento, creio que ele falhou em expor um retrato fiel de quem eu realmente sou. A promotoria, por sua vez, realizou um excelente trabalho em me retratar como um sociopata perigoso. Portanto, usarei este espaço gentilmente cedido pelo nosso honorável juiz para mostrar a vocês que não sou um monstro.
Sou apenas um homem atormentado por impulsos que me levaram a ruína. Antes de prosseguir, quero deixar claro que não tenho esperança alguma de ser absolvido, e nem pretendo tentar justificar meus atos ou plantar em seus corações um sentimento de pena que os induza a uma punição mais branda. Não, senhoras e senhores do júri, tudo o que eu desejo é que vocês me conheçam melhor, e dessa forma, e em posse de todos os fatos, sejam capazes de chegar ao veredicto apropriado.
Creio que a melhor forma de começar é explicando porque eu sou um estuprador. Sim, eu reconheço e é com muita dificuldade que digo essas palavras. Não é fácil, como um homem, admitir que minha libido funciona de uma maneira diferente dos demais membros do sexo masculino. Desde que entrei na puberdade e comecei a me interessar pelo sexo oposto nunca vi nenhum mérito no ato da conquista. Quando eu era adolescente e meus amigos contavam sobre como beijaram uma menina no cinema ou como deram uns amassos em alguma garota no banco detrás do carro, isso tudo me soava tão tedioso. Nunca entendi qual prazer um homem poderia ter em seduzir uma moça com palavras e gestos românticos. Por que pedir permissão por algo que se pode tomar a força?
Vocês ouviram depoimentos de psiquiatras sobre como o estupro é uma forma que homens problemáticos encontram de exercer poder sobre as mulheres. A Dra. Vivian Moreau explicou como o estuprador guarda um ressentimento das mulheres – geralmente fruto de causas tão variáveis como uma má relação com a mãe, abuso sexual na infância, inúmeras rejeições amorosas, relacionamentos que terminaram mal e até mesmo homossexualidade enrustida – e desconta subjugando-as e forçando-as a ter relações sexuais com ele.
Sinto dizer-lhes, mas não é este o meu caso. Confesso que gostaria que fosse, pois dessa forma seria muito mais fácil, da minha parte, transformar-me em um ser digno de compaixão perante seus olhares, caros jurados, se eu tivesse sido abusado na infância, ou se odiasse minha mãe, ou tivesse sido rejeitado por muitas mulheres, ou ainda tivesse desejos homossexuais – qualquer uma dessas opções tornaria minha transmutação de monstro para vítima incompreendida muito conveniente.
Entretanto, o fato é que não disponho de tais subterfúgios, e não me resta nenhuma outra escolha senão me expor pelo o que realmente sou: um homem que estupra mulheres por prazer. Eu amo minha mãe, senhoras e senhores, ela me criou com todo o amor e carinho que uma mulher pode dar ao seu filho. Portanto, não a culpem por eu ser quem eu sou. Também nunca tive problemas de rejeição com o sexo oposto. Olhem para mim! Melhor ainda, olhem para a minha ex-esposa! Vejam Dolores sentada ali no banco, entre a multidão e os jornalistas. Observem seus belos olhos verdes, seus cabelos loiros e longos, os traços delicados de seu rosto, reparem na perfeição de seu pequeno nariz e seus avermelhados lábios. Por favor, querida! Não vire o rosto, Dolores. Você sabe que é linda! Você não percebeu que todos, especialmente os homens, a observam atentamente desde que você colocou os pés neste tribunal?
Perdoem minha ex-esposa, caros jurados. Ou melhor, me perdoem pelo meu comportamento. Ainda a amo, e saber que jamais a terei de volta é um sofrimento que nunca superarei. Dolores, me perdoa! Me perdoa!
Sinto muito, meritíssimo. Vou manter a compostura e seguir com minha declaração final.
Enfim, creio que a beleza ímpar de minha ex-esposa é uma prova mais do que convincente de que gerar atração no sexo oposto nunca me fora um problema. Também garanto que não possuo nenhum desejo homossexual enrustido. Eu adoro mulheres, tanto que não resisto em estuprá-las.
Vocês compreendem que eu as estupro porque este ato me dá um prazer sexual indescritível? Não se trata de ressentimento ou qualquer outra explicação cheia de psicologismos. Trata-se apenas de sexo puro e simples. Prazer sexual primitivo. Estupro acontece em várias espécies animais. Por que com humanos seria diferente? É a lei da natureza o mais forte subjugar o mais fraco e usá-lo para satisfazer seus desejos. O que eu sinto, quando eu agarro uma mulher a força, rasgo suas roupas, seguro seus braços enquanto a penetro e observo seu rosto se contorcendo em desespero, é tesão – tesão em vê-la subjugada e tesão em usufruir dos prazeres de seu corpo sem seu consentimento.
A melhor forma de fazê-los entender o que eu sinto quando eu ataco uma mulher é a seguinte: imaginem um garoto que roubou um doce de uma loja de guloseimas e fugiu antes que o dono o pudesse capturá-lo. Imaginem a satisfação desse garoto ao aprontar uma travessura e sair impune. É assim que eu me sinto quando possuo uma mulher contra a vontade dela.
Felizmente eu estou ciente de quais seriam as consequências caso tentasse estuprar uma mulher. E garanto a vocês, caros jurados, que eu nunca estuprei uma humana em minha vida, pelo menos não até o trágico incidente que me trouxe perante a lei. Por favor, compreendam, estou perfeitamente ciente de que estupro é um ato abominável. Nem ouso dizer que sei o trauma que deve ser para a vítima. Eu simpatizo do fundo do meu coração, com as mulheres vítimas de tal crime hediondo, embora, a contragosto, compartilhe do fetiche sexual de estupradores. Por esta razão, por reconhecer o quanto meus desejos são imorais, fiz o que muitos homens na minha condição fizeram: recorri as ginoides.