Se não fosse pelas
mulheres o homem ainda estaria agachado em uma caverna comendo carne crua. Nós
só construímos a civilização com o fim de impressionar nossas namoradas.·.
Orson Welles
I
O nome
do livro em minhas mãos era A Extinção de
um Gênero: a História das Mulheres no Terceiro Milênio, de T.W.
Riparetti.
A origem do Vírus
Hemorrágico Uterino (VHU) tem sido o ponto de maior controvérsia na
comunidade científica. Entre as teorias mais populares destacamos a que postula
que o vírus VHU foi uma arma biológica que escapou do controle devido alguma
falha de segurança laboratorial ou foi propositadamente disseminada entre a
população por razões obscuras. Outra corrente teórica defende que o VHU fora
originalmente concebido como uma terapia gênica para mulheres portadoras da
Síndrome de Turner, mas sofrera uma mutação, tornando-se letal. Há também a
crença popular de que o VHU fora um castigo divino a humanidade. O único
consenso na comunidade científica é que todas as teorias carecem de evidências
que a sustentem.
Indivíduos do sexo masculino são imunes ao
vírus. O gene EFCYO, localizado no cromossomo Y
e encontrado apenas neste, torna homens resistentes a infecção. Essa característica única do vírus
reforça a hipótese de que se trata de um produto de laboratório. A infecção
pode ser transmitida de um individuo a outro via aérea ou através de gotículas
de saliva. Cabe também observar que homens, apesar de serem imunes ao vírus,
são agentes disseminadores. O período de incubação do VHU é de seis meses. A
portadora do vírus não apresenta qualquer sintoma nesse meio tempo. O primeiro
sintoma é hemorragia interna no útero. À medida que a doença progride o
sangramento torna-se mais intenso e incontrolável. A mídia da época popularizou
a expressão a “praga vermelha”, nome informal dado ao vírus.
– Pai,
como é uma mulher de verdade? – fora a pergunta de meu filho de dez anos.
– Bom,
filho, elas não eram diferentes de sua mãe – respondi enquanto folheava o
livro, procurando por uma das várias fotos de mulheres que havia ao longo da
obra. –Veja! Aí está, é uma mulher como outra qualquer.
Apontei para a foto, era a capa de uma revista
de moda do século 21. Vogue era a
palavra acima da mulher. Eu estava mentindo. Elas eram muito diferentes de uma
ginoide.
– Mas a
mãe não é de carne e osso – Nathaniel fez uma pergunta desconcertante.
– Acho
que você tem razão – respondi lacônico.
Fiquei em silêncio por um instante, pensando
no que dizer.
– Mas
porque você pergunta? Você não gosta da sua mãe? – indaguei curioso.
– Gosto
sim, eu amo muito a mãe – disse Nathaniel, enfático.
– Então
porque você quer saber como é uma mulher de verdade? – Nathaniel não respondeu.
Ele
começou a folhear o livro com um olhar reflexivo, como se procurasse em suas
páginas a resposta para minha pergunta.
Estudamos
por mais uma meia hora. Janine colocou Nathaniel para dormir. Passando pelo
corredor rumo a sala de ginástica eu podia ouvi-la cantando uma canção de ninar
com a perfeição lírica que apenas uma ginoide é capaz.
Acendi
as luzes da sala de ginástica, e lá estavam os androides de combate. Dei o
comando de voz e uma unidade se ativou. Selecionei a modalidade karatê Shotokan, porque este era o estilo em
que eu me considerava mais deficiente. Começamos a lutar. Após um bom combate
subi para o meu quarto. Janine preparou um banho quente. Entramos juntos na
banheira e transamos. Fui para a cama. Tinha uma entrevista às nove horas no
Canal 23.
Alonzo
Vargas era um homem gordo, muito gordo. Havia apenas quatro anos de diferença
entre nós, sendo ele mais jovem do que eu, entretanto, sua obesidade o fazia
parecer décadas mais velho. Suas roupas largas e coloridas lembravam um
paraquedas aberto, e devo essa comparação graças a minha experiência com esse
esquecido esporte radical. Seu sorriso excessivamente branco, pele sebosa e
olhar abestalhado contribuíram para dar a ele um aspecto desagradável.
–
Senhoras e senhores, aqui estamos com o nosso convidado de hoje. Mais uma vez
conosco, Bruno Donovan, “o destemido” – disse Vargas para a câmera.
– Bom
dia a todos – respondi secamente.
Pensava
na palavra “senhoras” que Vargas usou para se dirigir ao público, e como,
apesar de ginoides serem apenas máquinas, nenhum homem as via dessa forma.
–
Bruno, alguns dizem que você é corajoso, outros dizem que você é louco, mas o
fato é que suas extravagâncias e peripécias lhe renderam o apelido de “o
destemido”. Diga-nos, após escalar as montanhas de Marte, mergulhar nos oceanos
profundos das luas de Júpiter e ver as monstruosas e gigantescas criaturas que
habitavam as suas gélidas águas qual o seu próximo projeto?
– Bom,
Alonzo, para falar a verdade, acho que já fiz tudo que tinha para fazer nesse
mundo...e em outros – dei uma leve risada constrangida.
– Vou
fazer a pergunta que está na mente de todos: porque você se arrisca dessa
forma? – Alonzo sempre fazia essa pergunta quando eu ia ao programa dele, e
todas às vezes eu dava a mesma resposta.
– Olha,
é difícil de explicar. Você nunca sentiu que falta algo na sua vida? – Alonzo
me olhou como se eu estivesse falando outro idioma.
– Eu
sempre senti um vazio que nunca consegui explicar. Não me entenda mal, tenho
uma vida maravilhosa. Sou grato por isso. No entanto, por mais que eu
compreenda que devia ser feliz, não me sinto plenamente feliz.
Nunca me senti. E essa insatisfação, de alguma forma, é o combustível de minhas
proezas – me surpreendi com o tom poético de minha resposta.
Entretanto,
minhas próprias palavras não me convenciam, o que acredito ser a razão de
Alonzo, e praticamente todo mundo que me abordava na rua, fazer sempre a mesma
pergunta.
– Muito
bem, vamos fazer uma retrospectiva de sua carreira. Vamos falar da vez em que
você escalou o Monte Everest...
Respondi às perguntas me esforçando aparentar
interessado. Quando comecei a buscar por aventuras, alguns anos após a pane de
minha mãe, nunca imaginei que seria alçado ao posto de celebridade mundial.
“Não há mais nada interessante acontecendo no mundo. Você é a melhor notícia em
trezentos anos”, me explicou Alonzo na primeira vez em que me procurou pedindo
para lhe conceder uma entrevista.
Alonzo
me convidou para almoçar num restaurante italiano próximo ao estúdio do Canal
23. Ele disse que as garçonetes eram as ginoides mais belas que havia na
cidade. Entre uma conversa banal e outra, devidamente regada a vinho e massa da
melhor qualidade, fomos abordados por um rapaz.
– Seu
Bruno, posso ter uma palavrinha? – perguntou um jovem que parecia recém-saído
da adolescência.
– Qual
seria o assunto? – indaguei.
O rapaz
ficou sem jeito, e então respondeu:
– Acho
que seria melhor falarmos em particular.
–
Bobagem. Alonzo é meu amigo. O que você tiver para me dizer pode falar na
frente dele – respondi descontraído ao rapaz.
– Posso
me sentar? – Alonzo e eu cruzamos olhares e meu amigo fez uma expressão como se
estivesse dizendo “você decide”.
– Por
favor, sente-se – disse ao jovem, indicando uma cadeira.
Graças
a tarefa de ajudar meu filho no seu dever de casa terminei desenvolvendo um
gosto inesperado por história. Meu foco de interesse eram as partes obscuras e
inexplicáveis, e que no meio acadêmico não passavam de lendas e mitos. Como,
por exemplo, a cidade perdida de Atlântida, o acidente em Roswell e a lenda
moderna da última mulher da Terra. Segundo essa lenda, quando a epidemia do
vírus VHU alcançou níveis assustadores uma mulher teria sido colocada em estado
criogênico e escondida em algum lugar. As explicações sobre quem teria feito
isso e onde estaria essa mulher eram das mais diversas. Alguns diziam que teria
sido um trabalho da extinta ONU e que a mulher estaria em uma base secreta na
lua. Outros, que a Corporação Saiteki teria uma mulher preservada em seus
laboratórios.
No
entanto, não havia o menor indício de que tal mulher existisse. Some-se o fato
de que há trezentos anos a criogenia era uma ciência incipiente. De cada dez
tentativas de preservar um ser humano em animação suspensa, nove resultavam na
morte do indivíduo. Além disso, nenhuma tentativa de hibernação por um longo
período havia sido bem sucedida. Não era de se surpreender que essa história
tenha sido relegada a categoria de lenda.
Portanto,
nada do que o jovem, que durante a conversa se identificou como Theodoro
Antunes, me contou era novidade. Por outro lado, Alonzo escutara o rapaz, que
preferia ser chamado de Theo, atentamente. Apesar de conhecer a lenda da última
mulher da Terra, Vargas não estava familiarizado com suas nuances.
– Tudo
bem, garoto. Importa-se de ir direto ao ponto? – pedi impaciente.
– Eu
acho que descobri onde está a última mulher da Terra – novamente Alonzo e eu
cruzamos olhares, e desta vez trocando uma expressão mútua de espanto.
– Eu
lido com computadores, manutenção, análise de sistemas, essas coisas... Eu faço
uns trabalhos free-lance para o
governo de vez em quando. Fui contratado para recuperar dados de um servidor
das antigas Forças Armadas que haviam sido perdidos por uma falha do sistema.
Como hoje não existe mais exército, o governo queria recuperar esses dados pelo
seu valor histórico. Preservar a memória de uma instituição extinta, esse tipo
de coisa. Enquanto eu fazia esse serviço, acidentalmente recuperei um arquivo.
É uma cópia que fora apagada do servidor há cerca de trezentos anos.
– O que
tem nesses arquivos? – indaguei curioso.
Theo
apoiou os cotovelos na mesa, se aproximou de nós e sussurrou:
– São
dados de um experimento de criogenização.
– E? –
perguntou Alonzo, indiferente.
–
Prestem atenção. A cobaia, no experimento, é identificada apenas pelas iniciais
XX. Entenderam? Cromossomos XX? E sabem o que é mais estranho? As coordenadas
de latitude e longitude onde está localizado o casulo. É uma região selvagem
bem no meio da Floresta Amazônica! Por que motivo o exército haveria de colocar
um laboratório de criogenização num local de tão difícil acesso? – disse Theo,
inquisitivamente.
– Posso
pensar em inúmeros motivos – respondi.
– Você
não está interessado em saber o que tem nesse casulo? – perguntou-me Alonzo,
ciente de que eu já estava cogitando uma nova aventura.
– Tudo
bem, garoto. Vamos supor que você esteja certo. Por que você está me contando
isso? – perguntei.
–
Porque eu quero que você encontre o casulo, e quero que me leve com você na
viagem – respondeu Theo, ansioso.
Perguntei
a Theo por que ao invés de me procurar ele simplesmente não informou as
autoridades. O jovem respondeu que meu discurso na televisão o inspirou, que
também não se sentia plenamente feliz e que essa era a grande chance de fazer
algo diferente.
– Você sabe
que, se o garoto estiver certo, isso irá revolucionar o mundo. Imagine como
homens reagiriam ao descobrirem que ainda existe uma mulher viva no mundo.
Vocês já pararam para pensar na repercussão e nas consequências? – refletiu
Alonzo.
– Espera,
espera, espera! – interrompi Alonzo e Theo. – Não temos a menor ideia do que há
nesse casulo. Sequer sabemos se ainda está lá. Então, antes de perdemos tempo
com conjecturas vamos descobrir o que há no meio da floresta.
Alonzo
chamou a garçonete, pagou a conta e se levantou. Antes de ir embora, virou-se
para mim e disse:
– Se
você encontrar algo nessa expedição, quero ser o primeiro a saber. Vamos fazer
uma reportagem exclusiva. Você tem meu número.
–
Então? Você topa? – perguntou Theo com um brilho infantil nos olhos.
Sempre
que me preparava para uma nova aventura, um misto de entusiasmo e medo tomava
conta de mim. Pensava em tudo o que poderia dar errado. Eu poderia sofrer um
grave acidente ou até mesmo morrer. Nunca mais veria meu filho ou Janine.
Contudo, meus temores eram contrabalanceados pelo desejo de enfrentar o
desconhecido. O que haveria escondido há séculos no meio da floresta? Eu
precisava descobrir. Desvendar o mistério do casulo se sobrepunha ao sentimento
de cautela. O conflito interno me atormentava. Por um lado, queria ficar na
segurança de minha casa com meu filho e minha ginoide. Por outro, queria me
arriscar. Não poderia passar o resto da minha vida imaginando como teria sido
se eu tivesse escalado as montanhas de Marte, mergulhado nos oceanos das luas
de Júpiter, entre outras proezas que realizei ao longo dos meus cinquenta anos
de idade. Esse sentimento de “o que poderia ter sido?” era insuportável.
Portanto, sempre me decidia em favor da aventura.
Essa
hesitação era a mesma que me assombrara em outras ocasiões. Já estava
acostumado, e aprendi que a melhor forma de lidar com isso era me mantendo
ocupado. Comecei a treinar com uma intensidade maior do que o normal. Barras,
abdominais, levantamento de pesos, corridas. A experiência me ensinou que em
situações de perigo, um corpo em boa forma é a diferença entre a vida e a
morte.
Fui
para a sala de ginástica praticar artes marciais. Programei os androides para
nível máximo de dificuldade. Foi uma luta e tanto. Eu contra três máquinas.
Nunca tinha lutado com tantos ao mesmo tempo. Estava cansado, suado, com alguns
hematomas, mas não preocupado. Havia um protocolo de segurança na programação
dos androides que os impediam de me ferir gravemente. Entretanto, confesso que
sempre tive vontade de desligar os protocolos, mas nunca tive coragem. Se
fizesse isso, o combate se tornaria letal, tal qual acontecia com os
gladiadores de Roma que eu lera a respeito.
Ouvi a
voz de Nathaniel. “Pai”, essa simples palavra foi o suficiente para me
distrair. O shuto de um androide
acertou minha mandíbula em cheio. Quando eu me dei por conta estava caído.
Dei um
comando de voz para pausá-los. Nathaniel veio correndo em minha direção e me
abraçou.
–
Desculpa, pai.
– Tudo
bem, filho. Não foi culpa sua – disse, abraçando-o.
Nathaniel
queria que eu o ajudasse nos seus estudos. Estava tão envolvido com os
preparativos de minha expedição que não pude atendê-lo. Theo e eu partiríamos
em duas semanas. Passei a última semana organizando os mantimentos,
equipamentos e estudando todo o material que eu pude encontrar sobre a Floresta
Amazônica. Podia ter mandado Janine ajudar Nathaniel com seus estudos, mas
sabia que ele preferia a minha companhia.
Fomos
para a biblioteca. Nathaniel sentou no meu colo, e abrimos o capítulo sete do
livro A Extinção de um Gênero: a História
das Mulheres no Terceiro Milênio.
No período que ficou conhecido como A Segunda
Idade das Trevas, as mulheres morreram aos bilhões em questão de décadas.
Estima-se que pereciam em média vinte e cinco milhões de mulheres por ano ao
redor do planeta, vítimas da Praga Vermelha.
O sexo feminino tornou-se precioso. Os países
que conseguiram salvar algumas poucas mulheres logo entraram em atrito com
outras nações. Este foi o estopim que deu início a era da Guerra da Praga
Vermelha. O mundo foi assolado por versões modernas da Guerra de Tróia, que
ocorreram simultaneamente nos quatros cantos do globo. Homens se engajaram em
um conflito que levou a morte de bilhões.
No começo homens resistiram às ginoides. A
ideia de substituir suas mães, irmãs, filhas e esposas por máquinas
desagradavam a população masculina em geral. Todavia, a necessidade de
companhia feminina foi mais forte e homens terminaram cedendo.
Oito da
manhã. Eu estava no cais levando os mantimentos e todo o material necessário
para o barco. Do lado oposto ao Rio Amazonas, podia-se ver androides carregando
pesadas toras de madeira para um armazém. Conseguir um meio de transporte não
foi fácil. Tudo era automatizado e há séculos que nenhum ser humano entrava na
floresta. A extração de madeiras e minerais em regiões de difícil acesso era
realizada pelas máquinas. Portanto, tudo o que consegui foi uma antiga
embarcação pesqueira reformada e pilotada por um androide. Ao dizer quais eram minhas
pretensões o dono do barco, um sujeito de sobrenome Gomes, encarou-me como se
eu fosse louco.
–
Porque você não usa um androide para chegar a essas coordenadas que você quer?
Tenho um muito bom com ótimas câmeras instaladas. Você pode acompanhar todos os
seus movimentos e inclusive controlá-lo via computador – disse o dono do barco,
olhando para o mapa que eu tinha em mãos.
– Não,
obrigado – respondi com um sorriso gentil.
–
Talvez seja uma boa ideia, Bruno. Porque não mandamos o androide? – disse Theo,
preocupado.
–
Escuta, se você não quiser ir eu entendo. Sei que isso é perigoso e você não
está acostumado com esse tipo de situação – respondi condescendente.
Theo
ficou em silêncio por um breve momento.
– Não,
tudo bem. Eu vou – ele disse nervoso.
Subimos
no barco. Partimos em direção ao norte do Rio Amazonas.