sábado, 29 de dezembro de 2012

Veronica Lake Fake

Trecho do conto Veronica Lake Fake, do livro "A Eva Mecânica e outras Histórias de Ginoides".


Veronica Lake Fake

Quem faria uma lei para os amantes?
O amor é em si mesmo uma lei maior.

Boécio

Quando vi Veronica Lake pela primeira vez me encantei com sua beleza. Ela sem dúvida foi uma das mais belas mulheres da era de ouro de Hollywood. Mas somente agora, olhando para minha musa sentada no banco do passageiro, percebi que boa parte de sua beleza se devia as roupas e penteados dos anos 40. Aquela época possuía um certo charme peculiar.
Ela usava uma blusa branca e calças jeans. Seu cabelo era liso, sem aquele penteado ondulado dos filmes antigos, e o rosto estava sem maquiagem. Não havia na minha Veronica Lake fake aquele glamour de estrela de cinema. No entanto, mesmo vestida como uma mulher comum, a beleza de Veronica se destacava.
Fazia dez horas que havíamos deixado Porto Alegre. Estávamos indo rumo a Argentina. Dentro de duas horas chegaríamos ao nosso destino. Coloquei o carro no piloto automático, recostei o banco para trás e liguei o televisor.
– Boa noite a todos. Eu sou Ângelo Braga e este é o programa Roda Aberta. O tema do programa de hoje é “Ginoides: legalizar ou não?”. Para discutirmos esse assunto teremos dois convidados. Do meu lado esquerdo temos Andrea Steinem. Psicóloga e presidente do grupo Mulheres pela Humanidade no Brasil. Ao lado direito está Luciano Marduini. Advogado e líder do movimento Amor Cibernético. No centro da mesa temos o professor André Martins. Conceituado roboticista. Trabalhou com a Corporação Saiteki na fabricação das primeiras ginoides em nosso país. Ele é autor do livro Sexualidade na Era das Máquinas: o Impacto das Ginoides na Contemporaneidade. Começo com uma pergunta para Andrea Steinem. Andrea, porque a Mulheres pela Humanidade se opõe as ginoides?
– Boa noite, Ângelo. Bom, para começar, gostaria de deixar bem claro que ginoides são máquinas. Elas se parecem com mulheres, falam como mulheres, mas não se enganem, não são mulheres. Não há diferença nenhuma entre uma ginoide e uma geladeira, que isso fique bem claro. Portanto, não há razão para sentirmos alguma pena ou empatia por elas. Bom, porque a Mulheres pela Humanidade se opõe as ginoides? Porque ginoides são uma grande afronta a dignidade feminina! Não bastava mulheres serem objetificadas em comerciais de cerveja, revistas de moda e filmes pornográficos. As mulheres estão sendo transformadas em objetos sexuais para a satisfação masculina....
– Desculpe interromper, mas não são as mulheres humanas quem foram objetificadas. A senhora falou agora há pouco que ginoides são máquinas.
– Err...sim, eu falei isso. Mas por favor, entenda, as ginoides foram um grande retrocesso na luta pela igualdade entre os gêneros. Durante séculos mulheres foram tratadas como propriedade masculina e quando, finalmente, essa mentalidade foi superada, as ginoides apareceram. Permitir a comercialização de ginoides nada mais é do que legitimar a ideia de que a mulher deve ser uma escrava sexual do homem. Por que homens compram ginoides? Para fazer sexo com elas....
–  Desculpe, mas o senhor Marduini está pedindo a palavra.
– Boa noite, Ângelo. Boa noite a todos que estão nos assistindo. O que a senhora Andrea acabou de falar é uma mentira. Se homens querem ginoides apenas como escravas sexuais, então por que lutam para que a união civil entre um homem e uma ginoide seja legalmente reconhecida? A verdade é que muitos homens se apaixonam por ginoides e as enxergam como suas companheiras. Queremos nos casar com nossas ginoides, apresentá-las como nossas esposas sem sermos vítimas de preconceito. Queremos deixar nossos bens de herança para elas. Parte da luta do movimento Amor Cibernético, além de tornar a comercialização de ginoides legal novamente, é conquistar o direito de adotar uma criança. Todo o ser humano deve ter o direito de constituir família, independentemente de sua orientação sexual. O movimento Amor Cibernético luta pelo direito de toda pessoa de ser livre para amar o indivíduo que ele quiser, não importa se esse indivíduo é um ser humano ou uma máquina.
– Ora, Luciano, você sabe que isso é uma indecência! Uma afronta a Humanidade! Agora uma máquina é melhor que uma mulher de verdade? Como você pode defender uma coisa dessas? Imagine uma criança adotada por um casal ciberssexual. Que tipo de criação terá uma criança num ambiente desses? Temos que valorizar a família tradicional.
– Melhor que a de muitos casais humanos, senhora Steinem. Nos países onde a adoção de crianças por casais ciberssexuais é legalizada, pesquisas mostram que ginoides cuidam de crianças melhor que humanas. E também que crianças educadas por ginoides têm desempenho escolar melhor que as educadas por mulheres humanas. As razões são óbvias. Ginoides, como você mesmo disse, são máquinas, e por isso nunca estão cansadas demais para cuidar da criança, dar atenção a ela ou ajudá-la com o dever de casa. Em suma, a ginoide é uma mãe perfeita em tempo integral. Sabe, Andrea, é curioso logo você falar em valorização da família tradicional. Quando as ginoides apareceram no mercado, séculos atrás, as feministas da época as viram como uma grande conquista para as mulheres. O argumento feminista era que graças as ginoides as mulheres humanas finalmente estariam livres do papel social milenar de mães e esposas imposto pela sociedade.
O surgimento da ciberssexualidade como uma nova orientação sexual foi um choque para a moral humana. Por mais que a humanidade modificasse seus conjuntos de valores e aceitasse as mais diferentes preferências sexuais como uma opção sexual tão válida como outra qualquer, não fazendo um julgamento de valor entre uma e outra, a ideia de humanos se relacionarem com máquinas era algo que até mesmo a mente mais liberal tinha dificuldades de aceitar como normal. O amor entre homens e máquinas era um fenômeno sem precedentes na história da humanidade, e o ser humano, quando se vê perante aquilo que é diferente e a qual não compreende, ergue as muralhas do preconceito e da intolerância.
Embora houvesse mulheres ciberssexuais, a maioria era indiscutivelmente do sexo masculino. A explicação para essa discrepância estava na própria gênese da ciberssexualidade. Quando a Corporação Saiteki lançou as ginoides no mercado, há mais de dois séculos, seus executivos acreditavam ter lançado um produto revolucionário na indústria do erotismo. Revolucionário, mas ainda assim, apenas um produto que não tinha pretensões maiores, exceto aumentar os lucros da empresa. Ninguém poderia prever que o que inicialmente fora concebido apenas como uma máquina direcionada a satisfação da libido masculina, iria ter consequências tão inesperadas e causar uma transformação na sexualidade humana.
A Corporação Saiteki, numa estratégia para aumentar ainda mais os seus já elevados lucros com as ginoides, começou a negociar acordos de uso de imagem com celebridades. A primeira a fechar contrato foi a Top Model escocesa Alicia Hadaly – eleita a mais bela mulher do mundo consecutivas vezes, por diversas publicações. Nele havia uma cláusula que inclua uma parcela do lucro das vendas e como resultado, pela primeira vez na história, uma mulher superou homens nas listas de maiores fortunas do mundo.
Outras beldades famosas seguiram os passos de Alicia Hadaly e uma onda de ginoides fakes teve início no mundo inteiro. Graças as fakes qualquer homem comum podia ter as mulheres mais desejáveis do planeta em sua casa. Você não precisava ser bonito, rico ou famoso. Bastava ir à qualquer loja e escolher a fake de sua atriz ou modelo favorita.
Eu nunca havia me interessado por ginoides até o dia em que minha vida desmoronou. Descobri que sofria de uma cardiopatia congênita grave e teria que passar por uma arriscada cirurgia. Podia não sobreviver a operação. Como se não bastasse, alguns meses antes, havia também perdido meu emprego. Mas o fundo do poço foi quando minha noiva Denise me abandonou. Ela dizia que minha situação era complicada demais e rompeu o noivado. “Não posso te ver desse jeito”, ela disse. Eu podia lidar com qualquer dificuldade, desde que estivesse ao meu lado, mas ela não estava mais. Minha vida tinha acabado.
Durante o tempo em que fiquei internado no hospital passei madrugadas inteiras assistindo televisão. Pulava de canal em canal numa tentativa de anestesiar meu sofrimento amoroso com o brilho hipnótico do aparelho. Foi quando descobri uma emissora que passava filmes de Veronica Lake às madrugadas. O primeiro que assisti foi I Married a Witch.
Fantasiar com Veronica Lake era a forma que havia encontrado de esquecer minha ex-noiva. Na minha imaginação eu tinha uma Veronica Lake em preto e branco em meus braços e nela encontrava todo o conforto e ternura que me faltava naquele momento difícil de minha vida. Veronica Lake era minha namorada imaginária. Minha paixão platônica. 

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Ela, a ginoide




1ª Lei da Robótica: um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal.

2ª Lei da Robótica: um robô deve obedecer as ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a Primeira Lei.

                                                                                                                                Isaac Asimov

Suzana ouvia Camila chorando. Podia também ouvir a voz do pai da menina. O homem dizia a Camila para não ter medo. Dizia que ele ficaria muito chateado se sua filha não lhe obedecesse. A mãe de Camila dormia. Suzana, portanto, era a única ciente dos eventos que transcorriam naquela madrugada de quinta-feira.
Suzana bateu à porta do quarto da menina.
– Está tudo bem, Camila? – perguntou.
– Está tudo bem, Suzana. Vá embora! – respondeu uma voz masculina.
Suzana entrou no quarto. O pai de Camila, completamente nu e deitado na cama ao lado da menina, que também estava sem roupas, levantou-se. Enrolado nos lençóis ordenou, num tom de fúria contida, que Suzana se retirasse.
– Senhor, devo pedir que retorne ao seu quarto – disse Suzana, friamente.
– Você não manda em mim! Eu mando em você! Agora volte para a sala e não conte o que viu para ninguém! – respondeu o pai.
– Suzana, não vai embora! – suplicou a criança.
– Calma, minha fofa. Calma, você não quer aborrecer a Suzana. É tarde da noite e ela precisa dormir – disse o pai, sentando-se ao lado de sua filha e a abraçando.
– Suzana não precisa dormir! Ela nunca dorme! – respondeu a menina, tentando se soltar.
Suzana ergueu o pai de Camila da cama. Torceu seu braço e o jogou contra a parede. Imobilizado, o homem gritava para que o libertasse.
– Sinto muito, senhor. Não posso permitir que continue machucando essa criança.
O pai, após tentar em vão se libertar, lembrou que Suzana o superava em força física.
As ginoides MPO - 64 foram construídas para cuidar de crianças, e parte de suas especificações incluía não apenas um endoesqueleto de fibra de carbono movimentado por um sistema hidráulico interno, que dava a Suzana uma força descomunal, como também a ginoide fora programada com sofisticadas técnicas de defesa pessoal e artes marciais, um software opcional, o qual o pai de Camila pagou um extra para garantir maior segurança a sua filha, e que agora se arrependera.
Foi necessário menos de um minuto espremido contra a parede para que o pai de Camila percebesse o quanto era inútil resistir. Ele sabia que a segunda lei da robótica estava a favor da ginoide, que não mais lhe obedecia.
O que aconteceria a seguir? A ginoide o manteria preso contra a parede a noite toda? Ela o mataria? “Não, robôs não podem matar humanos, a primeira lei da robótica não permite”, pensou o homem, tentando manter a calma.

A mãe, sonolenta, e acordada pela comoção, apareceu no quarto. Ao ver seu marido nu contra a parede, junto a Suzana, demorou a entender o que estava acontecendo.
Ela conhecia o homem com quem casara. Sabia que, quando o casal decidiu comprar uma babá artificial para a filha, a insistência de seu marido que a ginoide tivesse a aparência de uma adolescente possuía motivações escusas. “Vai ser melhor para a nossa filha. A ginoide vai ser como uma irmã mais velha”, argumentou. A mãe de Camila acreditou, embora ciente que sempre que houvesse a oportunidade o marido transaria com aquela bela jovem ruiva de seios pequenos com o rosto cheio de sardas.
Todavia, ela escolheu ignorar esses fatos. Ser mãe e mulher de carreira ocupava muito tempo, mais do que dispunha. Por isso a presença de Suzana se fazia necessário. Além disso, ela era apenas uma máquina. A ginoide não oferecia risco. Melhor ter seu marido transando com uma mulher mais jovem mecânica do que com uma de carne e osso.
Quando viu sua filha nua na cama, abraçada a um urso panda de pelúcia e aos prantos, entendeu finalmente que não se tratava de uma pulada de cerca de seu marido, se é que transar com uma ginoide poderia ser considerado traição, conforme havia refletido sobre o tema inúmeras vezes.
Desta vez era algo pior, algo que conhecia tão bem quanto as traições de seu marido. Camila havia contado tudo a sua mãe. Porém, não encontrou em sua progenitora a salvação que esperava, tendo que conviver muitas noites com as moléstias noturnas infligidas pelo seu pai. Ao invés de proteger sua filha, optou por ignorar a realidade cruel de seu lar. Agora, ao presenciar a cena daquela madrugada de quinta-feira, ela entendeu o preço de sua omissão.
– Solta meu marido – gritou a mãe a ginoide, que a ignorou sumariamente.
A mulher tentou tirar as mãos que prendiam seu marido. Agrediu a ginoide, puxou seus cabelos, arranhou seu rosto, mas ela permanecia imóvel. Um rosto sem expressão, segurando o homem contra a parede. A mãe se sentia impotente. Uma raiva tomou conta dela ao perceber que nada podia contra aquela máquina que flagelava seu marido.
Então a mãe viu, na cabeceira ao lado da cama, um abajur á meia-luz. A mulher o ergueu, tirou o chapéu que protegia a lâmpada e a quebrou, golpeando-a contra a parede. Faíscas jorravam da ponta do abajur. A mãe cravou o objeto no olho direito da ginoide, penetrando fundo em sua órbita ocular.
 Uma corrente elétrica percorreu todo o corpo de Suzana. Ela soltou o homem e começou a ter espasmos pelo meio do quarto. A ginoide caminhava para frente e para trás enquanto um forte cheiro de queimado emanava dela e todas as luzes da casa começaram a piscar até que, enfim, a escuridão tomou conta da residência.
Suzana caiu no chão.
O pai apoiou as costas na parede. A mãe pegou o lençol no chão e cobriu seu marido. Da cama a criança observava a cena. A menina sentia-se negligenciada pela mãe, que optou por socorrer o homem que a machucara. Naquele momento Camila sentiu que a única pessoa que se importava com ela era Suzana, e correu em direção a ginoide.
– Filha, se afasta dela – gritou a mãe.
A cavidade negra e chamuscada que antes fora o olho direito, e que encontrava-se perfurada pelo abajur, exalava um cheiro de queimado que ardia nas narinas da menina, mas ela lutava contra o mal-estar e sacudia o corpo inerte de Suzana.
– Acorda, por favor – implorou Camila, ajoelhada.
As lágrimas da menina banhavam o rosto da ginoide. Então, como se as lágrimas a tivessem despertado, ela se levantou. A única luz no quarto vinha dos postes na rua, que, junto ao brilho natural do luar, formavam uma combinação de tons de amarelo e prata. Na escuridão a sombra da ginoide, projetada na parede, adquiriu contornos fantasmagóricos. Ela caminhou em silêncio em direção ao casal, que se encontrava sentado no chão, entre a cabeceira e a porta que dava para o corredor.
Toda a vizinhança acordou com os gritos de socorro dos pais de Camila.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

A substituta (trecho)


A substituta 

Toda mulher sábia edifica a sua casa; 
mas a tola a derruba com as próprias mãos.

Provérbios 14:1

Todas as vezes que saía da firma de contabilidade parava em frente à vitrine das lojas para admirar as ginoides. Ao vivo eram mais belas do que nas propagandas de TV. “Ginoides: mais do que uma mulher, tudo o que você sempre sonhou”, era o slogan da Corporação Saiteki. Havia ginoides para todo tipo de função imaginável: empregadas domésticas, babás, garçonetes, enfermeiras, secretárias, todas devidamente trajadas de acordo com suas respectivas funções, e colocadas lado a lado em plataformas de uns cinco centímetros de altura. Pela vitrine podia ver um casal, a mulher grávida de uns seis ou sete meses, escolhendo uma futura babá para seu filho. A ginoide que o casal examinava era um modelo que imitava uma adolescente ruiva de uns dezesseis anos.

No fundo havia uma peça separada do resto da loja por uma cortina preta. Em cima da porta de acesso, um letreiro com os dizeres “PROIBIDA A ENTRADA DE MENORES DE DEZOITO ANOS.” Naquela seção o consumidor encontrava ginoides vestidas com sensuais lingeries, cinta-liga, roupas de couro sadomasoquistas, ou mesmo completamente nuas. Havia um pouco de tudo para todos os gostos. Até algum tempo atrás eu entrava naquela seção e, junto com outros homens, silenciosamente realizava o ritual de contemplar aquelas belezas robóticas e deixar minha imaginação se esbaldar em imagens pornográficas. De vez em quando acontecia dos homens que circulavam por aquela isolada parte da loja iniciarem uma conversa casual.

 “Muito gostosa essa loira”, disse certa vez um homem ao meu lado, que admirava a mesma ginoide que eu. Era de comentários casuais como esse que nasciam breves diálogos que me permitiram aprender muito sobre os frequentadores daquela área.

Para minha surpresa, descobri que não era o único homem casado que cobiçava secretamente uma ginoide. No entanto, eu possuir uma aliança no dedo tornava complicado adquirir aquele produto, relegando-a a uma mera fantasia de um homem frustrado com o casamento. Por essa razão deixei de frequentar o local há tempos e agora me contentava em apenas olhar as ginoides expostas na vitrine. Não fazia sentido me torturar desejando algo que nunca poderia ter. 

Minha esposa, Letícia, havia mudado bastante desde que nos casamos. Eram muitas as pequenas coisas que ela fazia para me irritar no nosso dia a dia. Letícia provocava discussões pelos motivos mais banais, saía e não dava satisfações para onde ia, depreciava-me na frente dos outros, gastava todo o nosso dinheiro com inutilidades, rejeitava-me quando a procurava para sexo. Não raro, essas pequenas incomodações resultavam em brigas monumentais. Para minha esposa, eu era culpado tanto pelo que fazia quanto pelo que não fazia, e a punição dela variava entre a frieza e provocações gratuitas. A língua ferina de Letícia era sua arma mais letal, uma arma que me feria como uma navalha, deixando feridas que nunca cicatrizavam. 
Meu vizinho, Renato, que morava no apartamento ao lado, me aconselhou o divórcio. No entanto eu não queria, pois tinha esperança que fosse apenas uma fase ruim do casamento. 

“Sabe qual é o seu problema?”, costumava dizer o meu amigo. “Você se esforça demais para ser um bom marido. Quanto mais você tenta agradá-la mais Letícia te vê como um sujeito fraco, carente e sem atitude. Nós, maridos, tentamos fazer tudo da forma mais correta possível, e somos desprezados. Tentamos ser o que as mulheres queriam que fôssemos. Tornamo-nos confiáveis, maduros, domesticados. E então o que acontece? Elas ficam entediadas, é isso o que acontece!”.

Renato me contou que fora casado antes e que Letícia lembrava muito sua ex-esposa em tudo que ela tinha de pior. E tendo sua experiência como base, afirmava categoricamente que era ingenuidade minha crer que era apenas uma fase ruim do casamento. Mas não adiantava, mesmo se eu quisesse me divorciar iria perder grande parte do meu patrimônio por causa do acordo pré-nupcial. Se me divorciasse perderia Letícia e não teria dinheiro para adquirir a minha tão sonhada ginoide.

Renato era um homem que eu invejava. Sua esposa atual, Joana, tinha cinquenta e quatro anos, mas aparentava ter uns quinze anos a menos. Além de ser uma mulher de beleza invejável para sua idade, também era a mulher mais dedicada e carinhosa que já havia conhecido. Joana era muito agradável de se conversar. Inteligente, divertida e perspicaz, ela entretinha-me particularmente quando contava as anedotas do seu casamento.

Por outro lado, meu inferno pessoal com Letícia piorou. De uns tempos para cá ela começou a ficar mais distante que o normal. Não raro, ligava avisando que ia chegar mais tarde, porque tinha um serviço importante para terminar no trabalho ou dava outra desculpa parecida. Apesar de todos os problemas, ainda a amava e estava disposto a salvar o nosso casamento. Por essa razão decidi que teríamos uma conversa séria.

 Ouvi a porta se abrir, era tarde da noite, e da minha poltrona na sala vi Letícia entrar e se dirigir ao quarto. Ao contrário do que fiz em outras ocasiões, desta vez não a ignorei. Interceptei-a no corredor entre a sala e o quarto. Ela não queria conversar, disse que estava cansada. Segurei-a pelos braços e disse que não aguentava mais, que tínhamos que resolver nossa situação agora. Letícia empurrou-me e foi para o quarto. Sentada na cama, com as mãos no rosto, chorava, e então Letícia ergueu o rosto e começou a falar. 
Ela me confessou que estava tendo um caso com Felipe, uma antiga paixão dos tempos de faculdade. Tentei primeiro compreender, disse que não entendia o que tinha feito para merecer isso. Sempre fui fiel, carinhoso, respeitador e sempre fazia todas as vontades dela. Esforcei-me ao máximo para ser tudo aquilo que uma esposa espera de um marido.

 – Não sei explicar – disse Letícia com um olhar triste. – Eu sei que você sempre foi bom para mim. Eu apenas não te amo mais.  
Após alguns momentos de silêncio, retomou a palavra.
– Eu quero o divórcio, estou apaixonada por Felipe e temos planos de ficar juntos.

Uma discussão teve início. Berros, gritos, acusações mútuas, pequenos empurrões. Antigos ressentimentos foram trazidos à tona. A sua língua ferina, sempre afiada e pronta para derrubar meu espírito com palavras cruéis, entrou em ação. Perdi o controle. Letícia tentou se defender, mas eu a derrubei e me coloquei por cima dela. Tapei sua boca com a mão esquerda e com a direita segurei-a pelos cabelos. Comecei a golpear sua cabeça contra o chão repetidas vezes. Ela desmaiou. Letícia estava deitada ao lado do abajur quebrado e do bidê caído. Sangue escorria pela parte de trás de sua cabeça. Eu estava fora de meu juízo normal. O ódio havia sobrepujado minha racionalidade.

 Fui ao banheiro lavar o rosto. Ao olhar para o espelho vi em meu rosto resquícios dos impulsos destrutivos que haviam tomado conta de mim por um breve momento. Fiquei sentado na privada, encarando os azulejos brancos do banheiro, às vezes, pensando no que tinha feito, e momentos depois me perdendo em um vazio de pensamentos, como uma televisão fora do ar. Devo ter ficado horas naquela posição, e teria ficado nesse estado por mais tempo se a campainha não tivesse tocado.

Saí do meu transe. Entrei em pânico. Fingi que não havia ninguém em casa. Então, ouvi uma voz do outro lado da porta. Era Renato, chamando meu nome. Aliviado, abri a porta e o convidei para entrar. Eu sempre o vi como uma figura paterna, e talvez por essa razão tenha aberto a porta e contado o que aconteceu na esperança de que pudesse me ajudar, tal qual um pai a um filho, quando este está encrencado. Ia ligar para a polícia quando Renato mandou eu me afastar do videofone e disse para me sentar.

– Lembra que você sempre quis ter uma ginoide? – perguntou Renato. – Pois bem, meu jovem amigo, você já ouviu falar de substituição?
Quando ele falou a palavra substituição eu não sabia o que pensar. Substituição era uma espécie de lenda urbana. Havia rumores de laboratórios clandestinos no porão de casas antigas, fábricas abandonadas ou qualquer outro lugar afastado e escondido, onde supostamente fabricava-se ginoides que eram réplicas perfeitas de esposas assassinadas. Era o crime perfeito. Mas por ser o crime perfeito, ninguém acreditava que fosse verdade, pois nunca um caso fora descoberto. 
– Eu conheço algumas pessoas que podem fazer isso. Podem fazer o corpo de Letícia desaparecer, de forma que nunca seja encontrado, e substituí-la por uma ginoide – afirmou Renato. 
A proposta era a minha salvação, porém duvidava que fosse verdade.
– Você gosta da minha esposa Joana, não? – perguntou-me com um tom de voz um tanto sacana. – Não fique envergonhado. Acha que não percebi o jeito que você olha e conversa com ela? Joana é a esposa perfeita, não? Pena que ela nem sempre foi assim. Há muito tempo atrás Joana era uma megera como Letícia. Até que um dia eu cansei e contratei umas pessoas para matá-la. Mas essas pessoas não se limitaram a isso. Eles a mataram e a substituíram por uma ginoide.

Fiquei perplexo. Joana era uma ginoide? Mas ela era tão....humana.

Leia o resto em "A Eva mecânica e outras histórias de ginoides", a ser lançado em breve.